Grindcore: ruído e anarquia
O grindcore surge nos anos 1980, considerado, ao mesmo tempo, legado do punk e hardcore, assim como do thrash e do death metal. Apresentado como uma dissidência do punk – assim como o thrash e o death eram dissidências do metal clássico – tem em suas composições os três acordes do baixo e da guitarra, e a bateria em uma velocidade intensa, muitas vezes com o ritmo de uma britadeira. Por sua vez, o ritmo criado pelo grindcore acabou se tornando referência para as bandas death e black metal dos anos 90.
Os primeiros indícios de conjuntos que podem ser considerados como pioneiros do grindcore surgiram de diversos países, como o Siege (EUA), Lärm (Holanda), Asocial (Suécia) e o Brigada do Ódio (Brasil). Eram bandas que se constituíam como hardcore, mas aceleravam a velocidade e criavam uma sonoridade completamente distinta, já que incluíam o que no Brasil chamávamos sucos, ou em outra terminologia, os blast beats, ou seja, o que fosse mais próximo da completa cacofonia.
Mas, o surgimento desses conjuntos se encontrava no contexto do movimento punk dos anos 80, cuja perspectiva libertária anti-Estado, anti-capital, anti-racista, ambientalista e feminista de suas temáticas estão presentes de maneira ativa e intensa. De acordo com O’hara (2005, p. 17), essa perspectiva não pode ser datada no surgimento dos Sex Pistols, e ter reaparecido com o grunge de Seattle. Após o fim dos Sex Pistols, a condição libertária dos conjuntos e dos indivíduos do punk e do hardcore do fim dos anos 70 e começo dos anos 80, se manteve ativa e crescente, circulando em redes internacionais e regionais de contatos, como acontecia entre as bandas de thrash e death metal. E bandas brotavam de todos os lados. O relato de O’hara é pontual nesse sentido:
"A cena europeia apresenta um número maior de fanzines e bandas anarquistas, fazendo dos punks europeus, historicamente, mais ativos em termos políticos que os norte-americanos. Os criadores e editores desses fanzines foram influenciados pela segunda corrente do punk europeu (1980-1984), que era visivelmente politizada. Bandas como Crass, Conflict, Discharge, no Reino Unido, The Ex e BGK, na Holanda, MDC e Dead Kennedys, nos EUA, transformaram muitos punks em pensadores rebeldes, em vez de simples roqueiros. As ideologias dessas bandas se estendem até hoje por grupos que tocam em todos os diferentes pontos do espectro musical punk." (O’HARA, 2005, p. 74)
O conjunto grindcore há mais tempo na ativa é o Napalm Death. E, apesar de ter mudado todos os membros da formação original, as perspectivas em relação à sociedade, meio ambiente, política, religião e violência mantêm o mesmo radicalismo e contestação de quando a banda lançou seu primeiro álbum, intitulado Scum, o qual é aberto com uma lenta introdução, que repete constantemente Multinational Corporations, genocide of the staving nations (NAPALM DEATH, 1987).
Banda formada em Birmingham em meados dos anos 80, composta na maior parte por filhos de operários, mostrou-se original devido ao extremo barulho de suas composições, ao teor ácido de suas letras, e pela brutalidade visual de sua capa.
Uma grande caveira, com uma longa peruca despenteada, e com asas de morcego que se destacam na capa. Na sua frente, cinco homens, com os rostos deformados, vestidos de terno, com sorrisos sarcásticos e, na frente deles, uma mulher negra, esfarrapada, cercada de três crianças magras também farroupilhas, em pé sobre o letreiro que traz o nome do disco, Scum. Por sua vez, o letreiro está rodeado de um mar de crânios, entre os quais se encontram as logomarcas de uma série de grandes corporações internacionais, como IBM, McDonald’s, Nestlé, Coca-Cola, GM, Union Carbide, Kraft, ICI, Exxon, Roche, Ford, Phillips, entre outras. Nos cantos da capa, uma série de estruturas industriais, fortalecendo o discurso anti-industrial da perspectiva punk que permeia o universo das bandas de grindcore.
Ecologias noise
O atual vocalista da banda, Marc “Barney” Greenway – ex-vocalista da banda death metal britânica Benediction, e está no Napalm Death desde 1990 – é um ativo militante ecologista e vegetariano; em diversos shows, veste uma camiseta do grupo Sea Shepherd, organizado por Paul Watson. Aliás, no vídeo On the Brink to Extinction, de 2009, as imagens de caçadores de focas e baleias permeiam todo o videoclipe, e na composição, podemos notar a constante associação entre a extinção da vida no planeta como a extinção da raça humana;
"Can we avoid a natural selection?
do have the right to survive the failures
nature, its force the scales unbalanced
what’s the next step? What can we resolve?"
(NAPALM DEATH, 2009)
Mais do que uma simples indignação em relação à caça, a matança, ou a própria extinção de determinadas espécies, a banda se pergunta sobre o direito à sobrevivência humana após o desequilíbrio causado e promovido pela humanidade. Além disso, é evocada a noção do tempo, tempo limitado, em relação ao qual nós, humanos, estamos fadados a ficar sobre o planeta. A pergunta que se desvela é se estamos preparados, ou se poderemos resolver (solucionar) essa condição, fluída e temporária dos seres humanos sobre o planeta. Sugere-nos pensar a questão debatida por Castoriadis (2006), sobre a condição à margem do precipício que nós seres humanos nos encontramos, no que diz respeito não somente às perspectivas futuras e à ecologia, mas à própria produção de significados e sentidos de mundo sobre as quais constantemente as relações entre a educação e a ecologia propõem a pensar.
Nesse sentido, a banda acompanha a tendência das bandas de thrash metal, ao abordar o apocalipse atômico, cujo discurso ora é mais metafórico e implícito, ora a abordagem é direta, e está presente tanto nos primórdios da banda, nos anos 80, quanto nas composições mais recentes:
"The ascencion of human intelligence
To atomic genocide
Homo sapiens = the disease the cause the pollution
Erase the ages of evolutions"
(NAPALM DEATH, 1987)
"Eco-shock – fills our seas
Eco-shock – bone disease
Eco-shock – filling or skies
Eco-shock – followed with lies
Singular cancers – Absolute disasters
Ironic tragedy – Dark aspects of chemistry"
(NAPALM DEATH, 2012)
Principalmente na composição de 2012, as perspectivas sobre o mundo são sombrias e apocalípticas, no que tange à questão nuclear. Aparecem a energia e as bombas atômicas, a guerra como causa do armagedon e da destruição em larga escala, impedindo a manutenção da vida no planeta. O diabo, é o educador ecologista menor, que aparece vociferando de modo incompreensível, como o anjo da morte que anuncia o inferno fervente e radioativo, presente desde os mares e o ar contaminados, que invade o corpo até chegar os ossos, sob o aspecto da energia sem controle, como a banda thrash Nuclear Assault já havia anunciado, também nos anos 80 (BARCHI, 2016).
Mais do que fatalismo, há um combate, um anúncio de resistência, que nega e recusa a imposição de uma forma de energia, as justificativas da guerra e a própria legitimidade de um regime de governamentalidade policial. E não é só a letra que diz não, é a própria sonoridade das composições que não se permitem enquadrar em um contexto de aceitação do discurso, para torná-lo mais um entre vários aceitos, mas impotentes em sua força contestatória; legitimados, mas ao mesmo tempo banalizados por sua circulação midiática; e comercializáveis, matando sua independência e seu espírito Do It Yourself.
Ao manter, por tanto tempo, uma sonoridade “inaudível”, o grindcore levou ao extremo a impossibilidade de sua aceitação pela indústria musical – apesar das tentativas de algumas gravadoras e de certa popularidade de algumas bandas, como o próprio Napalm Death. Isso fez com que a assimilação, o apagamento e o impedimento de sua sobrevivência – tanto sonora quanto discursiva – se tornassem tarefas árduas e quase impossíveis para agentes policialescos tanto da música quanto de outras esferas políticas e sociais.
Ecologias e educações “Gore”: Vegetarianismo, especismo, vivissecção
O grindcore, em sua herança punk libertária, absorve e dissemina as mais diversas preocupações entre os próprios punks, como entre outras esferas da música extrema, como o próprio thrash, o death e até o black metal. Uma das mais caras é a questão dos direitos dos animais, o vegetarianismo, o veganismo e o que é chamado de especismo. O uso dos animais em laboratório é uma constante do discurso das bandas grindcore, como o próprio Napalm Death:
"Inject me/ With your pudrid diseases
Stretch my senses
Beyond the peak of insanity"
(NAPALM DEATH, 1988)
Aqui, nada é capaz de justificar a dor, o sofrimento e o abuso contra coelhos, macacos, ratos, gatos e cães em laboratório. O anarquismo, como igualdade de condições e direitos, estende a liberdade e a garantia de qualidade de vida a todos os seres que são considerados como sencientes, ou seja, conscientes de sua própria dor. Aliás, essa preocupação com os animais foi levada ao extremo com a banda Carcass.
Contemporânea e compatriota do Napalm Death, que contava, inclusive, com um ex-guitarrista da banda grindcore em sua formação, promoveria um encontro entre o death metal e o grindcore, criando um estilo mestiço que passaria a se chamar splatter. Sua sonoridade oscilava entre o grind e o death, e as suas temáticas eram “Gore”, ou seja, uma constante fala sobre enfermidades, cadáveres, deterioração do corpo humano e escoriações extremas, expondo a nua e crua verdade sobre os processos de deterioração humana.
O nome dos dois primeiros discos, Reek of Putrefaction e Symphony of Sickness, e as próprias capas – completamente preenchidas de fotos de doenças expostas, cadáveres, pedaços e restos de corpos – possibilita uma compreensão das letras que estavam sendo regurgitadas, vociferadas, vomitadas e berradas pelo Carcass. Por exemplo:
"Inhaling the dark smells
As you gorge out the dripping innards with glee
Succumbling to a translucidid state
As you sniff the aroma of necropsy
Bacterial decomposition
The aroma of larval infestation
Comsumin, ripening slime
As the cadaver is slowly wasting"
(CARCASS, 1989)
Apesar de muitas bandas de death metal usarem a temática do horror gore, da morte e das mutilações como forma de criar impacto, divertir-se com um humor negro, ou simplesmente conseguir sucesso com um público que buscava cada vez mais essa temática entre os anos 80 e 90, o Carcass, com esse discurso promotor de repugnância e asco, afirmou uma brutal militância pró-vegetarianismo, pró-animais:
"Para Carcass, esse ângulo era el vegetarianismo. Aunque sus implicaciones eram que la carne animal y humana eran una y la misma era constantemente representadas em lo sangriento de la portada de su álbum, Steer y Walker eran devotos vegetarianos, mientras Owen sin ser tan estricto, también era vegetariano." (MUDRIAN, 2009, p. 132)
Um verdadeiro açougue, um matadouro. Era dessa forma que o Carcass expunha a recusa ao consumo de carne e invertia ao extremo a ecologia do vegetarianismo. Assim como a própria educação, já que ao referir-se a uma carne, de forma indistinta, se era animal ou humana, sugeria pensar a legitimidade do exercício de poder humano sobre as outras espécies animais. A partir de uma avalanche sonora de distorções, blast beats e vocais guturais vomitados, berrando incompreensivelmente sobre necrotérios, cirurgias e doenças, o Carcass levava a ecologia a outro patamar do inferno: o do corte, da escoriação, da exposição na superfície da carne.
Anos mais tarde, no disco de retorno (a banda ficou inativa por 18 anos), o Carcass, traria a questão ecológica novamente à tona, buscando no escritor britânico William Blake o conceito de “satânicos moinhos negros” (Dark Satanic Mills), do poema Jerusalém, para tratar da questão da industrialização europeia, e o processo de “moagem” de carne humana promovido pelas fábricas recém-instaladas em território britânico, especialmente em Albion, cidade amada de Blake.
"Six, zero, two, six, nine, six, one
Torn apart in the soul destroying...
Six, zero, two, six, nine, six, one
Sweat & no redemption in the dark satanic mills
An existence, subservient, blinded you'll see
"A working class hero is something to be"
An existence, subservient, blinded you'll seed
A working class hero is something to bleed"
(CARCASS, 2013)
A associação entre os trabalhadores operários e os animais, sugerida na temática splatter do Carcass também aparece no último álbum do Napalm Death, intitulado “Apex Predator – Easy Meat” (Superpredador – Carne Fácil), em que o discurso vegetariano se aproxima do discurso de defesa do próprio trabalhador. Tão presa quanto são os bois, vacas, porcos, frangos, entre outros bichos, são os trabalhadores das classes menos abastadas transformadas em combustível para a manutenção da produção, não só do trabalho fabril, mas de todas as esferas laborais.
A capa, diferente dos álbuns anteriores, que geralmente mostravam mosaicos de imagens ligadas aos mais distintos aspectos das questões políticas, sociais, ambientais e econômicas, é simplesmente uma bandeja de supermercado, embalada em plástico PVC, que de longe parece um pacote comum de carne resfriada, mas que olhando mais de perto, mostra diversos pedaços de corpo humano, cortados e misturados. Esse é um discurso comum entre militantes vegetarianos, como por exemplo, nas ações do grupo PETA, em cujas ações públicas embalam pessoas sob tinta vermelha, e as “empacotam” como se fossem carne para vender, mas que também pode ser associado à exploração contemporânea da carne da multidão, a qual, para o filósofo italiano Antonio Negri (2009), é ao mesmo tempo passível de ser explorada e moída, como potencializadora de devires revolucionários constituintes de novas composições sociais, políticas e econômicas. Que posso também incluir como ecológicas.
No sentido tanto de defesa dos animais, como da refutação à energia atômica, quanto a outras esferas da crítica à destruição da vida, vale fazer referência a uma banda belga, chamada Agathocles. É uma das bandas mais ativas nos mais diversos sentidos da militância no grindcore libertário, seja no sentido de produzir composições e álbuns, seja no sentido de apoiar outras bandas, seja na ação direta pelos direitos dos animais, pelo vegetarianismo, pela denúncia das práticas predatórias.
Entre LP’S, EP’S, CD’S, coletâneas, fitas, seja solo, ou em parcerias com outras bandas, são mais de 250 trabalhos lançados pelo Agathocles. Desde 1987, muitas de suas capas fazem referências diretas ao uso de animais em laboratório, fazendas, fábricas de roupas, além da exposição de outros discursos militantes libertários, como a crítica à ação policial, à disseminação da fome no mundo, ao racismo e à pastoralização religiosa.
Quero destacar três capas. A primeira é de um EP chamado If this is cruel, what’s vivisection then?, o qual mostra uma pessoa deitada, amarrada com correntes, com tubos entrando pela boca, pelo nariz, ouvidos, com os olhos tapados com uma espécie de óculos especiais, e uma série de outros tubos entrando pela pele e pelo pescoço. O nome do EP não é referente a nenhuma música, mas é referente à capa e a mensagem em si. A alusão à crueldade presente aos testes em animais, que permeia grande parte das temáticas das bandas libertárias, é também uma militância ativa do vocalista Jan Fredrickx, último remanescente da formação original, e também um militante vegetariano, libertário e anti-vivisseccionista, como Barney Greenway, do Napalm Death.
Outra capa é do EP split (em conjunto) com a mais conhecida banda grindcore brasileira chamada Rot, de Osasco, que mostra a imagem de uma bomba sendo detonada (aparentemente um teste em área oceânica) e que se intitula Wiped from the surface, que é também a primeira música do EP:
"Nuclear intoxication \ Areas where all life has gone
Exposed to radiation\ Research the effects of the bomb
Militarism fucks up things \ Only tryng a war to win
Reducing humans to a thing \ Thrown like garbage in the bin
Addicted to power \ Addicted to greed
Another mutant bow \ From the capitalism breed
Research for what purpose \ To blast all life-forms from the surface
Does science know its limits? \ Will the threshold ever be reached?"
(AGATHOCLES, 1994)
Da mesma forma em que o Napalm Death recusa, refuta e contesta a energia nuclear, o discurso do Agathocles questiona os propósitos e os limites da ciência. Uma ciência militarista, de Estado, que é financiada e legitimada como a forma racional de desenvolvimento da humanidade, que não pode ser contestada, a não ser por práticas inseridas no seu paradigma, então, em vigência.
Ao negar a ciência nuclear, devido aos seus propósitos militares e estatais, aos seus paradigmas e consequentemente seus métodos, o grindcore anti nuclear do Napalm Death e do Agathocles, assim como o discurso antivivisseccionista e anti-especista do Carcass – e de uma grande quantidade de outras bandas grindcore e splatter – solicitam a exigência e a existência de outras ciências. Ciências que, ao refutarem o Método em prol dos métodos, e o fim da exclusividade do Estado/Capital na produção de ciência, estão se aliando principalmente à reivindicação de Feyerabend pela multiplicação dos métodos, e evocando Foucault, ao se estabelecerem, por intermédio da (anti) música como promotoras da “insurreição dos saberes”.
O grindcore, o thrash metal, o splatter, o death metal ou o metal clássico, ao se colocarem ao lado dos discursos dos vencidos – os indígenas, os afetados pela radiação, os animais – e recusarem a ciência de Estado, maior, se propõem como máquinas de guerras nômades, ciências menores, saberes insurrectos, pois já não concordam com as formas e afirmativas das ciências instituídas e maiores. Ao se postarem como tal, se aliam às perspectivas que não mais se colocam como alinhadas aos rebanhos normatizados e policialmente governamentalizados, no que diz respeito à reprodução dos saberes maiores.
Os gritos, urros e vociferações contra a infinidade dos horizontes científicos e suas catastróficas consequências, sugerem a abertura do debate sobre as reais necessidades dos coletivos sociais humanos, e de quais saberes e conhecimentos atendem a essas reivindicações, ou se somente atendem aquilo que o mercado precisa para sua ampliação, e a respectiva segurança que os Estados irão promover para que isso se mantenha expansível.
A terceira capa é do disco de 1997, chamado Humarrogance. Diferente da maioria das capas das bandas grindcore, e de suas próprias capas anteriores, não há uma foto, ou um mosaico de imagens que represente ou os membros da banda, ou alguma mensagem ou discurso panfletária direta, mas uma gravura que não permite uma digestão rápida e instantânea da imagem.
Há quatro pessoas, cujas feições impedem a sua identificação de gênero. Estão postadas à esquerda da capa, em frente a uma grande mesa coberta por um lençol branco. Sentadas em pares, o rosto destas pessoas parecem fundir-se, dando a impressão de quatro rostos misturados em dois, disformes, indefinidos e inexpressivos, com exceção do terceiro rosto da esquerda para a direita.
Os dois primeiros estão reproduzidos na frente dos dois outros, em uma pequena escultura postada sobre a mesa. As mãos dos dois primeiros rostos – brancas, praticamente tumulares, parecendo frias e sem vida, estão segurando um pequeno relógio de areia e uma borboleta amarela, a qual parece estar sendo o motivo de conversa entre essas duas pessoas.
Sobre a mesa ainda há uma mão - que parece de manequim, pois o pulso está diretamente sobre a mesa – segurando um ovo, e também um pequeno busto, cuja aparência é semelhante a das pessoas sentadas ao redor dessa mesa. Ainda na parte de cima da capa, é perceptível somente a borda de outra mesa, e as pernas desnudas de uma de outra pessoa, em pé. Ao me debruçar sobre a música título, que abre o álbum, a capa começa a tomar algum sentido. O termo “Humarrogância” dá voz à crítica ecológica e anárquica do Agathocles, quando aparece a contestação ao sentimento de superioridade que os seres humanos parecem ter em relação à seres considerados menores e inferiores.
"Yet another song / About our human race
Creating a planet of sadness / The products, these are we
Yet another warning / For the human family
Hummarogance is taking over / Stabbing earth to bleed
Exploit and pollute, / Destruction, rape of woods
These are just a few actions / Of intelligent humanhood,
Just think, yes do think / Of what we are heading to
And act, yes react / For the sake of mother earth"
(AGATHOCLES, 1998)
Em 1998, quando esse álbum foi lançado, a banda já tinha quase 15 anos de estrada, e reclamava, na canção título, o cansaço de repetir constantemente quase que as mesmas coisas sobre a raça humana, sobre a família, sobre a moral, sobre os costumes, e sobre o suicídio coletivo que se aproximava devido à manutenção dessa situação, já que é justamente essa perspectiva de superioridade em relação aos outros seres, e a constante e ilimitada expansão da ciência que poderiam provocar os danos catastróficos à vida no planeta.
As potencialidades educativas das ecologias ruidosas do grindcore
É necessário destacar e evidenciar a presença das perspectivas educativas e ecológicas no universo da sonoridade extrema do grindcore. Não o processo regulatório científico, normativo, pastoral, governamentalizado e policialesco criado pelo universo escolar institucional, que insiste em criar modelos de ensino aprendizado, com currículos e práticas estabelecidas verticalmente aos envolvidos nos cotidianos escolares.
O termo old school, ou new school para bandas que mudaram a sonoridade e as perspectivas mais antigas, se refere não somente a um determinado ou vários estilos de (anti) música, ou música extrema, nascidas no meio de culturas “eXtremas” (CANNEVACCI, 2002) insubmissas, contraculturais e inconsequentes. Ou ainda, não se refere somente a uma fase, novas tendências musicais e estéticas exóticas, típicas das juventudes descontentes da virada do século.
Quando se fala em old school, se fala no fato de jovens entusiastas, mas rebeldes, contestadores e iconoclastas, que por meio de uma proposta ruidosa e inconformada, criaram outras perspectivas de ação política e ecológica, através do grindcore, entre outras sonoridades extremas surgidas a partir dos anos 80.
Os logos das bandas, as capas de LP, EP’s, CD’s, os desenhos das camisas, a sonoridade, os aspectos políticos, sociais, culturais e, principalmente ecológicos das composições, possuem basicamente os mesmos elementos desde os anos 80, mostrando que verdadeiras escolas do pensamento, não institucionalizadas, foram sendo construídas.
Não são as escolas físicas, alicerçadas e fixas, sedentárias, com professores devidamente formados em instituições regulamentadas e autorizadas, cujos currículos, definidos de antemão, impõem saberes, histórias e ciências devidamente autorizadas pelos órgãos constituídos. E, principalmente, pelas quais todos necessariamente precisam que passar só pelo fato de ter nascido, independente daquela escola atender aos afetos, aos desejos, aos interesses.
Essa old school extrema, antimusical, contracultural, ruidosa, menor e inversa, apesar de seus conhecimentos e métodos próprios de produção de subjetividades e formação de determinados aspectos dos indivíduos, não está preocupada com conceitos ou imposições de uma noção de cidadania dos direitos e deveres que impõe ao indivíduo a incontestável inclusão na sociedade contemporânea. Ou com a formação das pessoas para o mercado de trabalho, por intermédio de uma série de imposições de condutas e normatividades, associadas a uma lógica competitiva, no qual uma ecologia dos bons comportamentos precisa ser inserida.
Compreender a sonoridade quase sempre intransponível, assumir a aparência mórbida e híbrida, compartilhar a atitude de recusa e de combate, dar-se a fuga de uma unívoca noção do coletivo, e inserir-se em grupos que possibilitam outras formas de ser, de se relacionar e de existir, perpassam pela necessidade de haver um processo de aprendizado que permita como saber-ser esse outro.
Um aprendizado que é atravessado por constantes criações de amizades, estabelecidas em conversas de bar, de shows, trocas de fitas, LP’s, CD’s, VHS’s, DVD’s, revistas, fanzines, contatos. Mais do que um processo unicamente comunicativo e/ou comunicacional, há um intenso processo educativo formativo a partir do interesse e o entusiasmo em saber e se aprofundar mais nesse universo. Saber mais sobre as bandas, saber sobre mais bandas, ter mais contatos, participar de mais shows, ouvir e agitar com mais discos.
Se for possível chamar essas iniciativas, movimentos e dinâmicas de contraculturais, é porque um movimento de recusa à imposição das lógicas hegemônicas se faz presente. Assim como as perspectivas dos movimentos de 1968 são amplamente tratadas como contraculturais, as sonoridades grindcore ampliaram essa possibilidade, pelo fato de não somente uma contestação sobre os poderes institucionalizados ser realizada, mas todo um contexto de produção de subjetividades alternativas e resistentes terem se espalhado, rizomaticamente, ao redor do globo nos últimos 30 anos.
Mais do que contar a história dos vencidos, ou da plebe, ou dos trabalhadores pobres constantemente embrutecidos e explorados pelo capital, buscar outras construções de sentidos de ecologia e educação em movimentos de musicalidade extrema e perspectiva anarquista – como o grindcore – é compreender a produção de sentido em outras esferas cotidianas, nas quais educações ambientais outras também são realizadas. Senão do modo sugerido/imposto pelas políticas públicas, mas de modo muito singular e adequado às perspectivas de mundo dos indivíduos e coletivos envolvidos.
Essas histórias outras de construção de saberes e sentidos nas relações que envolvem a educação e o meio ambiente, não são somente excluídas por não se adequarem aos padrões e normas impostas pelas políticas públicas ou pelo interesse da educação para a sustentabilidade desenvolvidas pelo ecocapitalismo. São histórias que, em sua militância e sua condição rebelde, não fazem questão nenhuma de se adequarem à meta-história imposta àqueles que não participaram dos primeiros momentos da construção de uma determinada educação ambiental, que podemos chamar de maior, a qual não deixa de ser importante no processo de construção de sociedades não predatórias, mais justas e igualitárias. Mas que não pode ser mais considerada como a única, a mais pertinente, mais sóbria e dialógica, pois, quanto mais ela se considera como tal, mais frágil é a possibilidade de sua existência transformativa, por seu apego à verdade, ao poder e à cristalização de seus ideais.
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