sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

OS 30 MELHORES DISCOS NACIONAIS DE 2023


A Revista Ruptura tarda, mas não falha. Mesmo com um considerável atraso, finalmente saiu nossa despretensiosa listinha com as 30 melhores produções musicais do ano de 2023 na sequelada opinião de Michel Carvalho, editor desse duvidoso webzine.

Ao desenvolver essa modesta lista de "melhores" discos do ano, mais uma vez tentei mesclar alguns artistas ligados ao mainstream com produções mais undergrounds na tentativa de tentar introduzir determinadas obras, subjetividades, cenas, movimentos e territorialidades nesse amontoado de listas que se repetem aos montes com discretas alterações aqui e ali. Espero que os algoritmos de busca nos ajudem.

Obviamente não ouvi tudo que saiu esse ano, seria humanamente impossível. Portanto, essa lista é baseada no que tive acesso e consegui ouvir na correria do decorrer do ano e reflete apenas meu tosco gosto pessoal. Os discos estão dispostos na lista de forma aleatória.  

Veja as minhas escolhas e conte pra mim qual foi o seu favorito e quem ficou de fora!

#30 BIXIGA 70 - VAPOR


Após algumas mudanças na formação, o grupo paulista de música afro-brasileira instrumental, Bixiga 70, está de volta com um novo disco, Vapor. O álbum conta com sete temas instigantes que marcam o início de uma nova fase na trajetória da banda que agora conta com a presença dos músicos Daniel Verano (trompete), Douglas Antunes (trombone), Daniel Nogueira (saxofone tenor), Cuca Ferreira (saxofone barítono), Cristiano Scabello (guitarra), Pedro Regada (teclados), Marcelo Dworecki (baixo), Valentina Facury (percussão) e Amanda Teles (percussão). O groove característico do grupo continua presente, mas agora temperado pela nova formação com destaque para o tecladista Pedro Regada, responsável por inserir ritmos alucinógenos à afro brasilidade do Bixiga 70. O disco conta com as participações especiais de Vitor Cabral e Simone Sou. Mixagem de Gustavo Lenza no Estúdio La Nave e masterização de Fernando Sanches no Estúdio El Rocha. Lançamento via o selo alemão Glitterhouse Records em Vinil e CD. Destaque para as faixas Marginal Elevado Radical e Mar Virado.

#29 APHORISM - ENTRANHAS DO SUBSOLO


O grupo baiano Aphorism voltou três anos após seu último lançamento com o disco Entranhas do Subsolo, uma pedrada death/grind com oito faixas em pouco mais de quinze minutos. Apesar de curto, o álbum é bastante intenso, seja pela ferocidade das músicas quanto pelo desalento que as letras transmitem - "...A desmemória é voluntária e cretina...". As faixas mesclam momentos mais explosivos com passagens mais vagarosas recheadas de riffs de guitarra cabulosíssimos! A gravação muito boa ficou a cargo de Dill Pereira no Ruído Rosa, a mixagem e masterização feitas por Will Killingsworth no Dead Air Studios. A ilustração da capa ficou a cargo de Ars Moriendee. O álbum foi lançado em CD numa parceria entre os selos Tropical Death, Cospe Fogo Gravações, Cianeto Discos, Excarnation Records, Two Beers or not Two Beers Records e Vertigem Discos.

#28 G. PAIM - SEM CALOR NEM COR



Gustavo Paim é um músico e poeta envolvido com o punk e a música eletrônica. Nascido em Belo Horizonte e residente em Curitiba também é membro co-fundador do selo Meia-Vida, responsável pelo lançamento de seu novo disco, Sem Calor Nem Cor. G. Paim, como assina seu projeto solo, é um registro intermitente de tentativas de experimentação condensadas sob o território da música eletrônica de pista e do pós-punk. O álbum apresenta oito faixas, sendo uma instrumental. Todas composições, letras e instrumentos foram elaboradas e gravados por Gustavo, com exceção da bateria eletrônica na faixa "Cidade Fantasma", gravada por Roompunx. A mixagem ficou a cargo de Gil Mello, a masterização por Michael Wilsegue, a produção ficou a cargo do próprio Gustavo e de Akadinho. A capa foi desenvolvida por Leonardo Faria e a foto da capa por Aline Vieira.

#27 MATHEUS CORINGA, GALF & NOSHUGAH - REPULSA


Os soteropolitanos Matheus Coringa e Galf AC são dois dos MC ‘s mais prolíficos do cenário hip hop atual, pra fechar a formação de quadrilha foi convidado o promissor produtor Noshugah que assina todos os beats da mixtape Repulsa. Os três elementos soltaram juntos esse pequeno grande trabalho composto de uma intro e seis faixas de boom bap sujo e underground. Em tempos onde o discurso e o modo de produção é determinado por algoritmos, mixtapes como Repulsa demonstram a aversão necessária a egotrip vazia que gera engajamento nas plataformas de streaming. A mixagem e a masterização ficaram por conta de Matheus Antunes. A capa simplesmente animal foi produzida pelo jovem artista Pedro "PDVRX". Lançamento via Sujoground, Sheila Records e Cremenow Studio. Brabíssimo!

#26 CRYPTA - SHADES OF SORROW


Shades of Sorrow é o segundo e mais novo álbum álbum de estúdio da banda brasileira de death metal feminina, Crypta. O disco foi gravado ao longo de fevereiro de 2023 no Family Mob Studio em São Paulo. Posteriormente, foi mixado por Daniel Bergstrand no 33 Studios em Estocolmo, Suécia e masterizado por Jens Bogren no Fascination Street Studios em Örebro, também na Suécia. Lançado pela gravadora austríaca Napalm Records, este álbum marca a estreia da guitarrista Jéssica di Falchi, que substituiu Sonia "Anubis" Nusselder. Crypta foi formada em 2019 após a saída de Fernanda Lira e Luana Dametto da banda Nervosa, de lá pra cá, vem conquistando a cena do death metal mundial fazendo shows em festivais relevantes por todo o globo. O novo álbum é longo, tendo quase uma hora de duração dividida em treze faixas de um death metal menos grotesco que aposta na construção de passagens mais melodiosas (muita influencia de Iron Maiden, principalmente nos solos de guitarra) do jeito que os gringos gostam. Destaque pra performance de todas as minas no disco, tudo executado com maestria, sobretudo o vocal da Fernanda que tá bem mais sinistro que no disco anterior. Belíssima arte da capa por Raul Campos.

#25 COZME! - EXU LADAINHA


Exu Ladainha é o primeiro álbum do projeto de música experimental alagoano, Cozme! Composto por uma única faixa de aproximadamente vinte minutos de duração, o disco nos convida a uma gira astral embalada por ruídos e sons emitidos por um instrumento de sopro fabricado pelo idealizador do projeto, Wellington Amâncio. O mesmo afirma que o projeto da Xarunga (nome que batiza o instrumento utilizado na gravação) foi concebido mediunicamente. Uma espécie de pífano modificado artesanalmente. Para além da prática com o instrumento de sopro citado, Exu Ladainha incorpora a improvisação, usos criativos de gravações de campo, samples coletados por um Tascam Dr-100 e também o uso de sintetizadores. Lançamento via Quilombo Discos e Black Mess Records.

#24 FBC - O AMOR, O PERDÃO E A TECNOLOGIA IRÃO NOS LEVAR PARA OUTRO PLANETA


Após o grande sucesso em torno do disco Baile (2021) - fruto de uma bem sucedida colaboração com o produtor VHOOR - FBC solta trampo novo na pista: O Amor, O Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta. Acompanhado pela dupla de produtores formada por Pedro Senna e Ugo Ludovico, além das vozes de Aline Magalhães, Sàvio Faschét, Iolanda Souza, Sarah Reis, Fernanda Valadares, FBC passeia pelos anos 1970, 1980 e 1990 fazendo uma combinação de elementos que vai dos primórdios do funk ao uso de temas sintéticos que desembocam na house music. Um mix de passado e presente no decorrer das quinze faixas totalmente diferentes de tudo que o rapper mineiro fez anteriormente, aliás, isso é meio que uma característica em sua carreira. Participações especiais de Don L, Abbot e niLL. 

#23 FOSSILIZATION - LEPROUS DAYLIGHT


Fossilization é uma banda de death metal formada em São Paulo no início de 2020, fase inicial da pandemia de covid. Depois do lançamento do ep He Whose Name Was Long Forgotten em 2021 e do split com a banda norte americana Ritual Necromancy em 2022, finalmente veio seu primeiro álbum, Leprous Daylight. O disco apresenta oito faixas totalmente death/doom metal areia de cemitério, fundindo passagens mais intensas com andamentos mais lentos e fúnebres. O duo paulista têm chamado bastante atenção no exterior, fazendo bastante shows e participando de diversos festivais. Gravado no Hellspass Studio com mixagem e masterização por conta de Otso Ukkonen. Leprous Daylight saiu nos formatos vinil, CD e tape via o selo italiano Everlasting Spew Records. Capa por Rio Oka. Altamente recomendado para quem curte Incantation. 

#22 DJ K - PÂNICO NO SUBMUNDO



Estourado desde que o site americano Pitchfork, maior referência de avaliação de álbuns na música pop contemporânea, cujas resenhas e notas rigorosas são esperadas e temidas, publicou uma elogiosa crítica a respeito do novo álbum do produtor paulista DJ K, de 22 anos, Pânico no Submundo. DJ K tinha apenas 17 anos quando começou a produzir funk, passando um ano inteiro estudando meticulosamente os tutoriais online do FL Studio e produzindo suas próprias faixas em um ritmo prolífico. Quando finalmente compartilhou sua produção online, ele imediatamente se tornou um componente principal do Baile do Helipa, festa de rua de Heliópolis, a maior favela de São Paulo, com uma população de mais de 100 mil habitantes. Atualmente lidera o coletivo musical Bruxaria Sound, que reúne 17 artistas, entre MCs, produtores e DJs. A Bruxaria evoca um funk de atmosfera sinistra e misteriosa, incrementando-o com uma musicalidade barulhenta que ultrapassa os limites do som e do corpo - não surpreendentemente, também se tornou conhecido como "sangra tímpano" ou "destruidor de fones de ouvido". Pânico no Submundo foi lançado em tape via o selo africano Nyege Nyege Tapes.

#21 TEST - DISCO NORMAL


Disco Normal é o quarto álbum do duo paulista, Test. Conhecida pelas suas apresentações em espaços públicos e por sua autenticidade, a banda jogou na praça um dos melhores discos de grindcore do ano na minha lombrada opinião. Gravado em ambientes incomuns pra captação de áudio como: ruas, embaixo de viaduto, dentro de vagão de trem abandonado, dialogando com as dinâmicas dos espaços públicos urbanos - tudo isso com o uso microfones e aparelhagens de gravação experimentais. Pra quem curte viajar em engenharia de som, é um prato cheio. Particularmente eu curto muito quando as bandas criam métodos de gravação que geram resultados diferentes do que a indústria musical e os algoritmos das plataformas de streaming demandam, grindcore é sobre isso também. O álbum aglomera dose faixas animais com uma abordagem mais experimental em relação aos discos anteriores. Participações especiais de Marian Sarine, Iggor Cavalera, Marcelo Angu, Phil Bersário, Aron Carriel, Jonnata Doll, Felipe Flip, Thais Blanco, Dylan Walker Orquestra Geek, skatistas e de um cachorro. Letras por diversos figuras como: Fernando Catatau, Vitor Brauer, Kiko Dinucci, Quique Brown e mais uma galera. Masterização feita por James Plotkin. A arte da capa ficou a cargo de Rael Brian e layout por Rodrigo Chã. Lançamento em vinil via All Music Matters, 255 Records e Corte Edições Limitadas. 

#20 NORTRAGAMUS - INEVITÁVEL


Em tempos de ascensão de subgêneros como o trap, grime e o drill, é interessante colocarmos os holofotes e darmos o devido reconhecimento para artistas que estão nadando contra a corrente. Foi lançado em 2023 o segundo álbum do projeto Nortragamus, Inevitável.  Nortragamus é um artista-animação que foi desenvolvido por Luiz Kuhner (diretor de arte); Wellington abreu (animação), André Bandeira (animação) e Pedro Alvarez (Ilustração). Além de estética visual, a sonoridade da voz possui uma distorção no pitching vocal, tornando-a mais aguda, lembrando sutilmente a estética de voz do Quasimoto, artista-animação norte americano famoso no rap. O álbum de pouco mais de 30 minutos possui onze faixas boom bap, com instrumentais de muito bom gosto, produzidos pelo carioca Mãolee, um dos fundadores da Tudubom Records. Destaque para os samples presentes no álbum, para os jogos de palavras, sacadas geniais, flows e métricas de bastante criatividade nas batidas. Scarp, também membro da Tudubom, somou participando em duas faixas e elevou ainda mais a musicalidade. Participações especiais de Daniel Shadow e Sain. O DJ LN foi o responsável pela mixagem e masterizaçãoLançamento via a consagrada banca carioca Tudubom.

#19 OS TINCOÃS - CANTO CORAL AFROBRASILEIRO


Gravado pouco antes da viagem do grupo a Angola, onde dois dos três integrantes, Mateus e Dadinho (compositores de todas as canções do álbum), passaram a viver, Canto Coral Afrobrasileiro ficou guardado por décadas. Remasterizado por Tadeu Mascarenhas, o álbum foi lançado em abril de 2023 pela Senzala Cultural, com patrocínio da Natura Musical e do Governo do Estado da Bahia, através do FazculturaEm sua quarta formação, com Mateus AleluiaBadu e Dadinho, o trio vocal baiano Os Tincoãs canta o sincretismo religioso através de orikis iorubanos e salmos, acompanhados do Coral dos Correios e Telégrafos do Rio de Janeiro. Produzido por Adelzon Gonçalves, com arranjos vocais do maestro Leonardo Bruno e regência de Armando Prazeres, o disco ainda conta com participação do lendário percussionista Pedro SorongoToques e temas do candomblé são interpretados pelos baianos da cidade de Cachoeira, que, com o acompanhamento do coral, aproximam-se da música gospel negra norte-americana, em uma joia da sonoridade afrodiaspórica. As faixas saúdam orixás como Iansã, Iemanjá e Oxum, e também a Jesus Cristo. Atabaques, agogôs, ganzás, violão e vozes criam um clima onírico e litúrgico, no qual os três integrantes d’Os Tincoãs soam como um único elemento.

#18 LASSO - ORDEM IMAGINADA


Pelo terceiro ano consecutivo, o grupo baiano Lasso oferece ao mundo um novo EP no momento em que a primavera chega no hemisfério norte e o outono se instala no sul do equador. Espelhando o clima imprevisível desta época do ano, as sete músicas presentes em Ordem Imaginada transitam entre explosões cruas de energia maníaca e pensamentos tensos, invocando os ciclos de ansiedade e depressão que dominam tantos de nós hoje em dia. Faixas como “Respice Finem” e “Raiva Derramada Na Estrada” soam como a incontrolável onda de adrenalina que acompanha um ataque de pânico, e embora os riffs intermediários de “Tecido Social” e “Nó” possam abrir o poço, é apenas para nos engolir inteiros. O ilustrador Carlos Casotti também fornece sua melhor arte de capa da banda, uma visualização misteriosa da enigmática abordagem do Lasso ao punk hardcore. Gravado e produzido pela própria banda no Ruído Rosa, com assistência de gravação por Dill Pereira. Mixado por Jonah Falco na Inland Waterways, masterizado por Will Killingsworth no Dead Air. Lançamento fruto de parceria entre os selos Sorry State Records (US) e Static Shock Records (UK).

#17 CAVALERA - MORBID VISIONS


Os irmãos Max e Iggor Cavalera decidiram revisitar cada uma das canções que integram o disco Morbid Visions - primeiro álbum de estúdio da banda mineira Sepultura, lançado em 1986 via Cogumelo Records - porém, agora sob a alcunha do projeto Cavalera. É como um diálogo da dupla com o próprio passado, introduzindo novas referências e elementos. Com boa produção e qualidade técnica incontestável, o registro apresenta oito regravações e uma faixa inédita (Burn the dead). Quando voltamos os ouvidos para os registros produzidos pelo Sepultura em início de carreira, ficam evidentes as limitações técnicas de Morbid Visions frente ao material apresentado posteriormente. Produzido em um intervalo de poucos dias, com o grupo testando os próprios instrumentos em estúdio e com o domínio parcial da língua inglesa, a versão original soa muito mais como um esboço do que uma obra propriamente dita. A nova versão foi regravada no Platinum Underground, em Phoenix, no Arizona (EUA). Os próprios Max e Iggor produziram as regravações. Igor Amadeus Cavalera tocou baixo e Daniel Gonzales (Possessed) pegou na guitarra solo. O berlinense Eliran Kantor, que já fez capas pra bandas como o Testament, reimaginou a arte gráfica. Lançamento via Nuclear Blast Records. Merecida releitura desse clássico do metal mundial.

#16 LUPE DE LUPE - UM TIJOLO COM SEU NOME


Um Tijolo Com Seu Nome é o sexto álbum de estúdio da banda mineira Lupe de Lupe. O disco propõe 24 faixas de 1 minuto a 2 minutos contando pequenos contos. Cada canção é uma história, um personagem da vida real ou imaginária. Concebido com o intuito de ser ouvido em qualquer ordem, a banda procurou inspiração tanto em gêneros com músicas super curtas, como nos clássicos do punk, as mixtapes de produtores de hip hop e em lançamentos mais recentes como os da banda paulista Test, quanto nas características do mundo pós-moderno. Vivemos numa realidade instantânea, caótica e etérea, a Lupe de Lupe se utiliza disso para promover um retalho de imagens aleatórias do que a banda encara como um tempo líquido em que as pessoas ouvem playlists e não álbuns, jogam jogos de mundo aberto com inúmeras rotas e procuram qualquer tipo de prazer momentâneo para aguentar mais um dia. Um Tijolo Com Seu Nome explora todas essas possibilidades, sendo elas boas ou ruins. Cada audição é uma ordem e uma experiência diferente. Fotografia da capa por Bruna Costa. Lançamento via Geração Perdida e Balaclava Records. Um disco pra ser ouvido no aleatório.

#15 ANA FRANGO ELÉTRICO - ME CHAMA DE GATO QUE EU SOU SUA


Confesso que nunca dei muita atenção para as produções da Ana Frango Elétrico, mas o fato desse disco ter saído, também, via o selo Mr. Bongo me instigou a curiosidade. 
Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua é uma verdadeira carta de amor de Ana Frango Elétrico à música brasileira. Terceiro disco de estúdio da cantora celebra o encontro do pop brasileiro atual com a MPB setenta/oitentista. O disco cheira a vinil e parte de uma audição atenta sobre a produção nacional entre os anos 1970 e 1980, aponta para a obra de veteranos da indústria, principalmente personagens que atuaram nos bastidores, mas em nenhum momento deixa de lado a vulnerabilidade poética. São dez composições que destacam a força dos sentimentos, estreitam laços e reverberam para além de qualquer qualidade técnica. Lançamento via Risco, Mr. Bongo e Think! Records.

#14 PUMAPJL - AUTODOMÍNIO


Em novo projeto nomeado Autodomínio, Pumapjl conversa com seu último trabalho lançado, onde são abordadas suas aventuras do cotidiano e desejos que hoje viraram realidade graças aos frutos colhidos com este trampo. São sete faixas de boom bap em colaboração com o beatmaker SonoTWS, que assinou todos os instrumentais. Pumapjl, nascido e criado no subúrbio do Rio de Janeiro, começou alguns experimentos musicais retratando seu cotidiano. Hoje, Puma retrata as turbulências e aventuras da infância/adolescência em suas músicas, algumas delas presentes no EP Naturalidade que já bateu mais de 50 milhões de plays nas plataformas de streamings. De Jundiaí, SonoTWS iniciou sua carreira musical como seletor no sistema de som jamaicano, fazendo parte do Jurassic Soundsystem e fundador do You&Me on a Jamboree (um dos blogs referência no garimpo de raridades jamaicanas). Seus beats, feitos com samples de vinil antigos na Emu SP1200 & Akai S950, seguem a linha mais suja do rap. A capa foi assinada pela Nihao e faz referência à capa do álbum mítico de Arthur Verocai. A direção criativa foi feita pelo Cegocreative, nos scratches Dj Novset e a mix/master pelo monstro 2F U-FLOW.

#13 DAMN YOUTH - DESCENDS INTO DISORDER


Cinco anos após o lançamento do seu primeiro disco, Breathing Insanity (2018), a banda cearense de thrash metal antifascista, Damn Youth, volta com o animal Descends Into Disorder. São dez faixas crossover/thrash metal até o talo, consolidando a banda como um dos grandes nomes do estilo no Brasil e na América do Sul. Ouvi algumas críticas em relação a produção e qualidade da gravação do disco por aí, coisa de sudestino. O pessoal quer ouvir metal maloca com a produção da Beyoncé, assim fica difícil. Chuva de riffs e críticas às contradições geradas pelo sistema capitalista de produção. O disco foi gravado na Punkhouse studios em Fortaleza (CE), com produção da própria banda e de Henrique Marques. A produção executiva ficou a cargo de Roger Capone e a pré produção, captação, edição, mixagem e masterização a cargo de Henrique Marques no incasamix. A linda arte da capa foi pintada pelo Giotefeli. Lançamento em conjunto via Läjä Records, Cospe Fogo Gravações e 255 Records. Nordeste neles!

#12 DEAFKIDS - RITOS DO COLAPSO


Ritos do Colapso é o novo trampo da banda Deafkids. O trio paulista reúne nesse disco uma versão remixada/remasterizada dos três últimos EP's de mesmo nome, anteriormente lançados apenas digitalmente durante a pandemia, com a adição de duas músicas feitas exclusivamente para o jogo Cyberpunk 2077. A distopia reina no jogo e em nosso mundo real, a música do disco captura a surrealidade da sobrevivência nesses últimos anos de ascensão da extrema direita no mundo, pandemia, confinamento, guerras, crises sociais, governamentais e climáticas. São ao total quatorze faixas ritualísticas onde o Deafkids mais uma vez ultrapassa os limites da música punk engessada, criando passagens abstratas com foco em ritmos afro-indígenas brasileiros e manipulações eletrônicas com o uso de congas, djembes, bongôs, tablas, flautas, cuíca, baterias eletrônicas, samplers e sintetizadores – explorando uma linguagem quase absurda na pós-produção. Gravado por Douglas Leal e Felipe Pato. A mixagem ficou a cargo de Douglas Leal, a masterização por conta de André Leal e Kleber Mariano no Estúdio Jukebox em Volta Redonda. Destaque para o projeto gráfico do álbum desenvolvido por Douglas Leal. Deafkids é, como sempre, uma viagem! 

#11 RACIONAIS MC'S - RACIONAIS 3 DÉCADAS (AO VIVO)


O Racionais MC's é, incontestavelmente, um dos maiores expoentes da música popular brasileira na atualidade e, sem sombra de dúvida, o maior e mais relevante grupo de rap em atividade do Brasil. Mano BrownEdi RockIce Blue e KL Jay excursionaram pelos maiores palcos e festivais do país durante uma turnê comemorativa iniciada em 2019 e, agora, apresenta ao público essa performance em Racionais 3 Décadas, disponível nos formatos de áudio e vídeo. Gravado em São Paulo, essa não é a primeira vez do quarteto em formato ao vivo, o novo material chega dezessete anos após  1000 Trutas, 1000 Tretas, de 2006, histórico show do grupo no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, e conta com o repertório atualizado do grupo. O álbum possui vinte e duas faixas que abrangem toda a discografia do Racionais. Destaque para as versões e arranjos repletos de groove tocados pela banda de apoio que os acompanhou no decorrer dessa turnê. Celebração mais do que merecida para o grupo, que está mais forte e relevante do que nunca. Vida longa aos Racionais MC's!

#10 JULICO - ONIRIKUM


Julico, vocalista, guitarrista e compositor da The Baggios, banda sergipana com duas indicações ao Grammy, jogou na praça o segundo disco de sua carreira solo, Onirikum. Sucessor do maravilhoso Ikê Maré (2020), Onirikum foi concebido ao longo de três anos e segue mergulhado ainda mais na influencia da música brasileira, principalmente na sonoridade da soul music mesclada ao samba rock, samba jazz, música nordestina, além das doses suaves do blues rock também presentes no Baggios. O disco pode ser facilmente considerado um tributo à música brazuca. Lançado através do selo Toca Discos, apresenta treze faixas. O título do trabalho deriva da palavra “onírico”, que significa “relativo a sonhos”O próprio músico, além de produzir o disco, gravou baixo, violão, guitarras e vocais. Completando o time teve na bateria seu amigo Ravy Bezerra e Thiago Babalu na faixa "Quero Colo", percussões de Betinho Caixa D’agua, teclas por Leo Airplane, trompete por André Lima, saxofone por Mario Augusto, trombone por Jeovane Lima. Participação Especial Fernanda Broggi em “Motivo de Saudade”. A belíssima arte da capa remetendo ao surrealismo foi desenvolvida por IA.

#9 MÃE QUE DÁ MEDO - MANEJO FÁLICO


O projeto experimental alagoano Mãe Que Dá Medo é formado pelo duo Gabriela Ramos (guitarras, baixos, beats e backing vocais) e Victor Mafra (baterias, vocais e letras). Seu segundo trampo, Manejo Fálico, combina uma gama de ritmos que vão da música eletrônica ao rock alternativo, passando por momentos mais ruidosos e experimentais até passagens de metal extremo. Esse mix de referências musicais dá ao disco uma vibe meio que de coletânea com várias bandas diferentes tocando e isso é ótimo, pois, além de gerar uma sonoridade dinâmica e original, não torna a audição do álbum cansativa. As dez faixas de Manejo Fálico foram gravadas de forma independente em Maceió, com mixagem e masterização por conta de Julia Soares. Participação de Clemens Scharge nos beats da última faixa, gravada ao vivo. Arte da capa por Damaged Artwork. Destaco as faixas "fag attack", "casa do caralho" com uma passagem meio Adelino Nascimento no final e a sonic youthzêra "(> . <)". Contra toda a caretice da música maceioense e ótimo pra ouvir após o consumo de drogas pesadas baratas. 

#8 ELZA SOARES - NO TEMPO DA INTOLERÂNCIA


Lançado na data em que Elza Soares completaria 93 anos, No Tempo da Intolerância marca a despedida de uma das maiores vozes da música nacional. Entre composições autorais e colaborações com nomes como Dona Ivone Lara, Rita Lee, Josyara e Isabela Morais, o registro começou a ser desenhado logo após Planeta Fome (2019), mas ficou um ano na gaveta após o falecimento da cantora, em janeiro de 2022. Com produção de Rafael Ramos, o trabalho com dez faixas foi finalizado em parceria com Pedro Loureiro, empresário, e Vanessa Soares, neta da artista. Algumas letras de músicas foram garimpadas por Pedro nos cadernos de Elza, como uma citação a Martin Luther King. O registro propõe um encontro de estilos em que passeou ao longo da carreira de sete décadas. Dentre os assuntos abordados, Elza fala de justiça social, direitos das mulheres e da população negra, traçando paralelos com seus últimos discos: Planeta Fome (2019), Deus é Mulher (2018) e A Mulher do Fim do Mundo (2015). Na época do seu falecimento, a artista finalizava No Tempo da Intolerância e o projeto Ao Vivo no Municipal, lançado em maio de 2022. Ambos os projetos foram criados em parceria com a Deck, responsável também pelo disco Planeta Fome.

#7 EXPURGO - LIVE OBSCENITY


Os grinders do Expurgo agrediram nossos tímpanos novamente, dessa vez com o álbum, Live Obscenity, um registro histórico gravado em 2018 (mas lançado somente em 2023) ao vivo no aniversário de vinte anos do lendário Obscene Extreme Festival - considerado o maior festival de música extrema do mundo. O primeiro disco ao vivo da banda tem uma qualidade de gravação muito boa e reúne vinte e cinco faixas grindcore implacáveis. A banda é altamente produtiva e tem a reputação de lançar materiais cada vez melhores ao longo dos anos. Ao ouvir toda a sua discografia, percebe-se que eles estão definitivamente evoluindo ao longo do tempo, adicionando novas técnicas ao seu som e experimentando diferentes abordagens de escrita. Além de suas decomposições autorais, o setlist dessa apresentação trouxe covers de Ulcerous Phlegm, Corrupted, Regurgitate e Impetigo. Gravação via Lunatic Media. Mixagem a cargo de Philipe Belisário e Expurgo no Lacraias Studio. Foto da capa por Gergana Bozhanova. Lançamento em CD via Black Hole Productions. Recomendado apenas para pessoas com os ouvidos calejados no barulho.

#6 SAIN - KTT ZOO


Sain, que já havia conquistado reconhecimento com seus trabalhos anteriores, demonstra uma considerável evolução lírica e técnica em seu novo álbum, KTT ZOO. O rapper se destaca por sua versatilidade, demonstrando uma maturidade artística que impressiona em seu último trampo. Composto por dez faixas, o disco apresenta uma mescla de estilos e influências, trazendo elementos do boom bap anos 90 de NY misturado com bases jazzísticas  e com a estética dos bailes do Rio. KTT ZOO trás participações especiais de peso como Febem, Felp22, Douglas Lemos, Marcelo D2, Erik Skratch e Lord Apex, que acrescentam ainda mais brilho e diversidade ao projeto. Além das faixas musicais que trazem histórias e experiências do Catete e da vida do rapper, a capa desse álbum é algo que realmente chama atenção, conseguindo transmitir e se conectar perfeitamente com o que é proposto no álbum. Essa arte incrível foi assinada por Mudo e Testemunha.midia. 

#5 DEADTRACK - INHUMAN


Formada em meados de 2014, a banda mineira Deadtrack lançou esse ano o enérgico Inhuman. O curto disco incorpora elementos musicais vindos do grindcore, death metal e do hardcore no decorrer de suas intensas nove faixas, marcadas por explosões rápidas de blastbeats e andamentos mais lentos e pesados. A produção cria uma ambientação poluída que combina com a proposta do disco, os timbres de guitarra e baixo são graves e, assim como os vocais e bateria, se expressam com ferocidade. As letras são na língua inglesa e baseiam-se em questões políticas e sociais, tratando de temas atuais como desigualdade de classe, antifascismo e opressão de uma forma mais subjetiva. A sonoridade não se limita apenas a um estilo ou ritmo e essa combinação de elementos certamente é um fator que enriquece as músicas da banda. Inhuman é uma boa pedida pra quem curte um grindcore mais groovado e moderno. 

#4 AGUIDAVI DO JÊJE - S/T


"O que esta obra de arte propõe é uma longa viagem atlântica" diz Nei Lopes na contracapa do Aguidavi do Jêje, primeiro disco da orquestra de atabaques baiana. O grupo conta com 14 integrantes Ogans do Terreiro Zogodoo Bogum Malê Hundo, talentos da música baiana, de idades entre 15 e 45 anos, liderado por Luizinho do Jêje, músico nascido e criado no Bogum. Considerado um gênio dos atabaques, Luizinho já foi percussionista do Quinteto Letieres Leite, Olodum, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Margareth Menezes, Gilsons, Daniela Mercury, Mateus Aleluia, Virgínia Rodrigues e Orkestra Rumpilezz. O lançamento do álbum de mesmo nome, Aguidavi do Jêje é uma experiência sonora que celebra a ancestralidade afro-baiana, com sete faixas autorais gravadas no Terreiro de Bogum, quilombo mais antigo da Bahia. O som dos atabaques e a riqueza das tradições culturais marcam a essência desse disco. O álbum conta com a participação especial de Gilberto Gil e Carlinhos Sete Cordas. Lançamento em vinil via Rocinante e Três selos.

#3 BIKE - ARTE BRUTA


Arte Bruta é o quinto álbum da banda paulista, Bike. Com a produção de Guilherme Held, discípulo na guitarra do finado Lanny Gordin, e músico que já trabalhou com diversos astros da MPB, o Bike chega muito perto da psicodelia praticada pelas bandas brasileiras dos anos 70 e 80, algo entre Som Imaginário, Casa das Máquinas e Violeta de Outono. Em pouco mais de meia hora, o Bike mostra faixas psicodélicas como Além-Ambiente, O Torto Santo, Clara-Luz, Traço e Risco, Um Encontro do Céu Com a Terra, um momento kraut como em Filha do Vento, e as brasileiras afro-tropicais Cedro e Santa Cabeça. Com treze músicas, em pouco mais de 33 minutos, certeiro e direto ao ponto, o Bike concretiza um dos melhores álbuns do ano. Gravado por Gustavo Mendes e Guilherme Held no Estúdio Held em São Paulo. Mixagem por conta de Guilherme Held e masterização por Fernando Sanches no Estúdio El Rocha. Arte da capa por Juli Ribeiro. Lançamento via Quadrado Mágico e Before Sunrise Records

#2 DRONEDEUS - AMBIENTE DE RUA


Dronedeus é um quinteto fortalezense que mistura spoken word, triphop e experimentalismos eletrônicos, projeções e performances. Voz, textos, poesia, samples, distorções, imagens, movimentos, tudo misturado para apresentar uma paisagem visual, que conversa com a tradição da poesia sonora e do art rock, ou rock de vanguarda, mergulhando no universo das performances sonoras e imagéticas. Criada a partir do encontro dos textos de Lenildo Gomes e da música de Vitor Cozilos, Rudriquix e Clau Aniz, o projeto de arte sonora busca ultrapassar alguns limites dos gêneros artísticos que compõem seu escopo criativo. Na formação atual, foi incorporada a experimentação em audiovisual de Tuan Fernandes. Como resultado, temos uma experiência que transversaliza o encontro entre música e literatura, textos e ruídos, imagens. Em Ambiente de Rua, lançado pelo selo Mercúrio Música, as letras e performances visuais seguem o caminho das ruas desabitadas, das pessoas perdidas em lugar algum (ou em não-lugares) e da permanente tentativa de sobrevivência mediante o caos. Recheado de ruídos urbanos, timbres eletrônicos e experimentações, o álbum foi produzido por Briar e masterizado por Klaus Sena. O trabalho traz novamente a participação de Marta Aurélia e conta, dessa vez, com o vocal gutural de Haru Cage, vocalista da banda Corja. Destaque para a capa do disco, assinada pela artista Amanda Nunes.

#1 ANTISKIEUMORRA - PRONTO PRA DESAGRADAR


Antiskieumorra, banda veterana de Natal, Rio Grande do Norte, lançou próximo ao final do ano o álbum Pronto Pra Desagradar. O disco joga na nossa cara vinte faixas fastcore em aproximadamente meia hora e marca o retorno da banda ao estúdio depois de dez anos após o Mais Rápido que Imediatamente (2013). É também um trabalho comemorativo aos 20 anos de atividade da banda, que recentemente também voltou aos palcos de forma mais regular depois de um longo período de aparições esporádicas. Pronto Pra Desagradar aborda, dentre tantos outros assuntos, questões relacionadas ao momento politico e social que estamos atravessando desde à ascensão da extrema direita no país como: A expansão do agronegócio e consequentemente as catástrofes climáticas, o genocídio indígena, o bolsonarismo, o militarismo, o conservadorismo, entre outras doenças contagiosas. Lançado de forma independente, o disco conta com a mixagem e masterização de Nicolas Gomes. A expressiva arte da capa foi criação de Wendel Araújo. 

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

A recolonização da escuta (o túmulo da musica independente)

 

Serviço de streaming está monopolizando nossos ouvidos e impacto disso na qualidade da produção musical.


 Por Michel Carvalho


Pois é, o mundo gira, mas as contradições continuam. Muita gente acreditou que a internet iria ajudar os artistas a se libertarem da lógica mercadológica do monopólio das grandes gravadoras de outros tempos. Em alguma medida isso pode ter acontecido momentaneamente, mas o que mudou de fato, foi a dinâmica de controle da indústria musical na mão de algumas poucas multinacionais.

Ainda que muitos vejam as plataformas de streaming como uma ferramenta indispensável para a exposição de seu trabalho artístico pela possibilidade de disponibilizar suas músicas online sem a necessidade de desembolsar muito dinheiro pra isso ou de uma grande gravadora por trás - usando serviços de distribuição digital e permitindo que sua música alcance audiências em todo o mundo, mesmo sem uma presença física - É interessante levar em consideração que, para além da exposição desejada, essa falsa sensação de independência tem nos tornado totalmente dependentes e sujeitos às políticas e algoritmos das plataformas de streaming, onde mudanças constantes nas regras impactam na visibilidade, produção e receita dos artistas independentes. A compensação gerada na imensa maioria das vezes é insuficiente para cobrir sequer os custos de produção do próprio fonograma, entre outras várias problemáticas.

Em 2024, o Spotify irá deixar de pagar faixas que não chegarem a 1k de plays por ano. Esse dinheiro vai para os maiores artistas da plataforma (maioria gringos), aumentando ainda mais as contradições já existentes no aplicativo. O valor do pagamento médio por execução é de cerca de 2 centavos de real. Esse dinheiro não vai diretamente para o artista. A maior parte vai para quem detém os direitos sobre o fonograma - como é conhecida a gravação da música. Uma parcela menor vai para o autor, que detém os direitos sobre a composição em si, abrangendo a melodia e a letra. Até o ano passado, o Spotify já havia desembolsado para artistas como a Taylor Swift cerca de 350 milhões de reais. Mas para músicos independentes os valores pagos não dão nem para comprar um par de baquetas. Usei o exemplo do $potify, mas se aplica pra YouTube, Deezer, Normal Free etc.

Além disso, a dinâmica do algoritmo dessas plataformas vêm influenciando severamente desde o processo criativo, passando pela padronização da qualidade e timbragem de mixagens e masterizações, até mesmo nos discursos vinculados à música (afinal, não é todo discurso que engaja), condicionando de forma hegemônica nossa escuta e alterando nossas formas de expressão e comunicação, subordinando o mercado musical à estrutura das mídias sociais - onde a curadoria de festivais e casa de shows são baseados em número de seguidores por exemplo. Essa reconfiguração das formas de produção musical de uns anos pra cá têm alimentado a lógica que para ter potencial no mercado fonográfico, os artistas devem trabalhar para o algoritmo dessas empresas.

É fato que esse fenômeno tem muito mais impacto para a grande indústria, mas acaba contaminando todos que ocupam esse mesmo ecossistema. Qualquer artista que tenha perfil em rede social e música nos serviços de streaming esta subordinado de alguma maneira a essa estrutura. O monopólio dessas plataformas não nos dá opção a não ser nos sujeitar a permanecer nesse ambiente, mesmo sendo constantemente usurpados e hostilizados.

Na atual dinâmica dos streamings, nosso corre independente se tornou "grátis" a medida que, paradoxalmente, custa cada vez mais caro produzir nos moldes que o algoritmo pede. Na real, o que gera receita é publicidade, a música se tornou apenas a trilha sonora na sociedade do espetáculo, tornando tudo uma grande propaganda pra vender algo. As grandes questões são: Vamos continuar alimentando nossos exploradores? Qual seria a saída desse abismo?

Algumas pessoas apontam para outras plataformas tal qual o iTunes ou o Bandcamp como uma alternativa possível, mas que também possuem uma série de limitações. Ao contrário das plataformas que pagam por views, o Bandcamp permite que os usuários comprem os discos ou singles dos artistas no formato digital. O grande problema é que a venda desse formato de música não vingou no Brasil e existe muita falta de interesse em guardar arquivos digitais hoje em dia. Mesmo que o artista tenha um número de audições alta, a venda do álbum digital se dá em dólar, isso pressupõe a existência de um público no exterior.

Como se vê, a uberização do artista independente diante desse novo panorama de produção musical é um fenômeno bastante complexo e possui várias camadas que esse descompromissado papo de mesa de boteco não conseguiria abarcar. Assim sendo, acredito que a saída se dê pela via do fortalecimento de relações reais como: ir aos shows, comprar um merchandising do artista que você gosta, apoiar campanhas de financiamento coletivo - ou seja, nenhuma novidade. O papel de um público comprometido e ativo é importantíssimo nesse sentido. Não sou contra que se escute ou se use plataformas como o Spotify (inclusive também uso bastante), pois cumpre um papel e pode servir até pra dar visibilidade pros lançamentos físicos e demais produções. Lembrando que a venda de míseros 7 CDs numa gig desleixada em um final de semana pode ser mais lucrativo e vantajoso que um ano de Spotify.

É essencial reconhecer que a tecnologia avança, as coisas progridem e que pouquíssimas pessoas ainda escutam música no formato físico, porém nem toda ideia de progresso é estritamente benéfica - basta olhar o preço que o "progresso" está nos cobrando enquanto sociedade. Por isso, penso que a troca do streaming por discos, CDs e MP3 (ou o uso conjunto de streaming e mídias físicas) exige esforço. No entanto, a escuta é diferente. A experiência é mais focada, mais engajada (veja só). No final das contas, é você que terá que decidir se sua escuta é ativa ou passiva, se é algo que você está fazendo ou se é algo que você está apenas recebendo apaticamente. Afinal, não dizem por aí que tudo é político.


segunda-feira, 9 de outubro de 2023

O RUÍDO INFAME DAS ECOLOGIAS MENORES: O grindcore e as relações entre meio ambiente e educação



O grindcore é  uma  dissidência  mestiça do punk e do heavy metal,  em  suas  vertentes mais rápidas e pesadas, surgidas nos anos 80. A brutal cacofonia marca sua postura anticomercial,  e  as  perspectivas  libertárias  de suas  capas  e  letras  expõe  a  radicalidade  de  seu posicionamento  político.  A  intenção  deste  texto é  promover  um  diálogo  entre  a  ecologia,  a educação  e  o grindcore,  partindo  da  concepção desse  último  como  um  criador  de  perspectivas ambientais  e  formativas  menores  e  libertárias, não  alinhadas  às  perspectivas  hegemônicas  e institucionalizadas.  Os  conceitos  de  infâmia  e “saberes  insurrectos”  sugeridos  por  Michel Foucault  possibilitam  potencializar  o grindcore como agente de construção de outras verdades e histórias.


Por Rodrigo Barchi


Dissidências...

Há uma história da educação ambiental. E há histórias outras, de   educações   ambientais  outras.   A   primeira   é contada  nos  documentos  e  tratados  assinados  ao  final  das grandes  conferências,  reuniões  e  congressos  internacionais da  educação  ambiental,  realizadas  sob  a  tutela  das  Nações Unidas. E também está registrada nos programas, políticas e cartilhas   institucionais,   as   quais   são   produzidas   pelas secretarias de educação e/ou de meio ambiente dos governos nacionais,  estaduais  e  municipais,  servindo  de  referência “segura e inquestionável” para as ações públicas em âmbito estatal  e  também  para  a produção  de  conhecimento  em educação ambiental.

Por sua vez, é possível pensarmos que as perspectivas ecologistas   estão   presentes   em  outros   meios   que   não somente  aqueles  que  foram  institucionalizados,  ou  mesmo que  buscam  terem  reconhecidos  seus  discursos para  serem inclusos  entre  as  noções  devidamente  legitimadas  como educação   ambiental,   sendo   enquadradas   e  cristalizadas nos/pelos padrões científicos e burocráticos vigentes.

Essas outras ecologias estão presentes nos discursos e nas  ações  de  grupos  que  não estão  preocupados  com  a  sua aceitação  perante  as  esferas  e  organizações  que  legitimam oficialmente o que é ou não ecologia. São  manifestações de pessoas e coletivos que buscam fugir aos padrões de conduta impostos  por  uma  determinada  ação  normalizadora,  a qual se    mostra    cada    vez    mais    impositiva    das    noções homogeneizantes  daquilo  que  possa  ser  entendido  como ciência, educação e ação política. 

Ao recusarem  sua legitimação  pelas esferas do poder institucionalizado, e manterem sua postura radical perante as ações    predatórias    do    capital    associado    aos    Estados nacionais,  é  possível,  se  não  classificarmos – para  não cairmos   na   armadilha  taxonômica   e   universalizante   de algumas   práticas   científicas   intransigentes   nas  ciências humanas – mas potencializarmos essas ecologias como menores. As quais, por estarem em uma condição de militância e  dissidência perante  o  caráter  oficial  das  ecologias,  não compartilham   e   nem   são   cúmplices   das   perspectivas ecológicas  presentes  nos  documentos  oficiais,  que  podem ser chamadas de maiores. 

Esse  texto,   portanto,  tem  a  intenção  de  trazer   o discurso   ecologista   presente   em  um   movimento   (anti) musical  chamado grindcore,  surgido  nos  anos  80  e  que  se caracteriza  tanto  pela  grande  velocidade  quanto  pelo  alto ruído    de    suas    composições.    Surgido    na    esfera    dos movimentos  punks  anarquistas,  e  também  das  vertentes  do metal,  as  letras  das  (anti)  músicas  e  as  imagens  de  capas,  o estilo  apresenta   perspectivas   muito   radicais   no   que   diz respeito à política, à sociedade, à ciência e à ecologia. E são justamente   as   ecologias   do grindcore que   esse   ensaio pretende abordar, enfocando, principalmente, o seu potencial educador e formativo.

Como  escopo  teórico,  a  proposta  é  trazer  o debate realizado  por  Foucault,  a  partir  da  influência  de  Nietzsche em   seu   pensamento   e   obra,   sobre   a   genealogia   e   a construção do saber, de forma  que seja possível, a partir do conceito de “saberes insurrectos” e das verdades construídas pelas  pessoas  infames,  desvelar-se  um  pouco  mais  sobre  as ecologias e educações menores construídas por esses grupos menores  e/ou  marginais.  Quando  sugiro  a  infâmia,  é  no sentido  de  trazer  à  tona  os  registros  de  pessoas  e/ou  grupos que não têm suas histórias,  vidas e perspectivas inclusas no que é entendido, pelos discursos oficialistas e maiores, como “A história da Educação Ambiental”.

Cabe  ainda  ressaltar  que  o  esforço  aqui  não  é  buscar indícios daquilo que se chama por ecologia – ecologia maior – nas  manifestações  que exponho,  apesar  de  elas  também existirem.  Assim  como  na  esfera  da  educação.  Mas,  como sugere Viveiros de Castro (2007), na pesquisa antropológica, a   proposta   é   potencializar   o   pensamento   sobre  essas multiplicidades    como    força    menor,    e    buscar    nessa perspectiva  suas  formas  educativas  e  ecológicas.  Longe  de agregar  as  perspectivas  ecológicas  à  “multiplicidade  de concepções ecologistas” e pensá-las também como mais um integrante  da  ecologia  maior,  a  intenção  é  discutir essas   ecologias   e   educações   menores como   sistemas próprios,  criadores  de  suas  próprias  perspectivas,  que  põem para  correr  as  universalidades  totalizantes  para  estabelecer suas medidas.

As verdades outras

A influência do pensamento nietzscheano no trabalho de  Michel  Foucault  é  marcada  constante  e  intensamente  na perspectiva genealógica dos textos e pesquisas desenvolvidas a respeito do poder. Foucault, inclusive, adota o  termo  genealogia  para  fazer  as  investigações  relativas  ao exercício do poder na construção dos sujeitos. 

No   prefácio   de Genealogia   da   Moral,   Nietzsche afirma  ser  necessário  que  o  valor  dos  valores  morais  seja colocado em questão (NIETZSCHE, 2009, p. 9). Recusando a  noção  na  qual  a  moral  sempre  esteve  à  margem  de qualquer   questionamento,  sugere   o   alemão   uma   análise detalhada.   Essa  nova   exigência   se  faz   presente  devido, justamente,  ao  fato  de  que,  se  não  há  uma  origem,  uma fundação  e  um  princípio  das  coisas  e  do  mundo,  não  há também  um  princípio  metafísico  impositivo  das  condutas dos seres humanos. O filósofo alemão alega que é necessário perguntar-se  sobre  o  que  é  e  como  esses  valores  foram construídos,  e  como  o  bem  e  o  mal  se  tornaram  sinônimos de útil e nocivo.

Foucault afirma que Nietzsche, ao buscar o momento (ou  os  momentos)  em  que,  para  um  povo  ou  nação,  as “almas” se unificam, e o “eu” se inventa como uma unidade, é  possível   identificar   uma   série   de   acontecimentos   e acidentes,  que  tornam  possível  fazer  da  origem – ao  ser agitada – um  aglomerado  heterogêneo,  cuja  fragmentação destrói toda a unidade da fundação: 

"A  proveniência  também  permite  reencontrar,  sob  o aspecto   único   de   uma  característica   de   um   conceito   a proliferação  dos  acontecimentos  através  dos  quais  (graças aos  quais,  contra  os  quais)  eles  se  formaram.  A  genealogia não  pretende  recuar  no  tempo  para  estabelecer uma  grande continuidade  para  além  da  dispersão  do  esquecimento.  Sua tarefa  não é  mostrar que o passado está ainda ali, bem  vivo no presente, animando-o ainda em segredo, após ter imposto a  todos  os  obstáculos  de  percursos  uma  forma  esboçada desde o início." (FOUCAULT, 2013, p. 278-279)

A  genealogia  se  faz  como  a  análise  da  proveniência, ou  seja,  do  antigo  pertencimento  a  um  grupo  e  tudo  aquilo que o liga, o ordena e o assemelha. Por isso Foucault afirma que   a   genealogia   está   presente   e   precisa   mostrar   a articulação do corpo com a história, que o marca e arruína. É a  partir  da  raça  ou  do  tipo  social  que  torna  possível  o “assemelhamento” de uns com os outros. É a partir dos erros produzidos na criação de um tipo de corpo que tenderia a ser o  modelo  dessa  semelhança  do  indivíduo  ao  outro,  e  o aparecimento   das   falhas   devido   aos   acidentes,   desejos, acontecimentos  e  erros  que  se  torna  possível  a  análise  da proveniência, a despeito da origem.

E é sobre o corpo que Foucault realiza suas primeiras análises  genealógicas ao  escrever Vigiar  e  Punir,  em  que utiliza a terminologia de Nietzsche para estudar os efeitos de poder  na  construção  dos  “corpos  dóceis”  em  instituições como hospitais, quartéis, escolas e prisões.

Foucault chama de microfísica do poder um exercício que faz  com  que  os  corpos  sejam  produtivos  e,  para  isso, necessitem ser docilizados. Mas essas práticas de criação de corpos   dóceis   não   são   concebidas   tanto   como   uma propriedade  de  quem  está  em  uma  posição  privilegiada  nas sociedades, sobre os grupos localizados sob esse poder, mas é  uma  estratégia  na  qual   os  efeitos  de  dominação  são atribuídos à certas disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos que desvendam relações tensas (FOUCAULT, 1987, p. 26) nas quais os corpos, mais do que serem  possuídos por um soberano absoluto, são construídos e moldados, ganhando uma utilização político-econômica, já que  as  sociedades,  a  partir  do  século  XVIII  e  XIX,  exigem uma mão-de-obra livre e consumidora. Dessa forma,

"Analisar   o   investimento   político   do   corpo   e   a microfísica  do  poder  supõe  então  que  se  renuncie – no  que se   refere   ao   poder – à  oposição   violência-ideologia,   à metáfora   da   propriedade,   ao   modelo   do   contrato   e   da conquista.  No  que  se  refere  ao  saber,  que  se  renuncie  à oposição do que é interessado e do que é desinteressado, ao modelo    do    conhecimento    e    ao    primado    do    sujeito." (FOUCAULT, 1987, p 27)

Quando decide estudar os mecanismos punitivos nas instituições  disciplinares,  Foucault  o  faz  dando  destaque, principalmente, aos efeitos positivos (FOUCAULT, 1987, p. 23)  que  as  ações  punitivas  podem  induzir,  fazendo  dessas uma “função social complexa”, que dão ao corpo utilidade e docilidade,  o  constituindo  como  uma  força  de  trabalho produtiva e submissa:

"Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia: pode muito bem ser direta, física, usar  a  força  contra  a  força,  agir  sobre  elementos  materiais sem,    no    entanto,    ser    violenta:    pode    ser    calculada, organizada,  tecnicamente  pensada,  pode  ser  sutil,  não  fazer uso de armas nem do terror, e no entanto, continuar a ser de ordem física" (FOUCAULT, 1987, p.26).

É esse o  momento em que  Foucault sugere que pode haver  um  “saber”  no  corpo  que  não  esteja  ligado intrinsecamente  ao  funcionamento  ou  controle  do  mesmo, mas  uma  tecnologia  política  do  corpo,  a  qual  seria  uma “Instrumentação  uniforme”  (FOUCAULT,  1987,  p.  26). Como  afirma  Machado  (2007,  p.  167),  a  partir  de Vigiar  e Punir Foucault pretende explicar o saber e seu aparecimento “a partir de condições e possibilidades externas aos próprios saberes”, já que eles são considerados como dispositivos de natureza política. 

Esses  saberes,  ainda  de  acordo  com  Machado,  não são mais do que peças produzidas nas relações de poder; ou ainda,   materialidades,   práticas,   acontecimentos   tornados dispositivos  políticos  articulados  às  dinâmicas  e  estruturas econômicas.

Na     genealogia,  portanto,     esses     saberes     são compreendidos  como  aquilo  que  surge  após  as  práticas disciplinares de docilização dos indivíduos. Ao abandonar a ideia do sujeito do conhecimento que produzo saber a partir de  objetos  e  categorias  de  análise,  originadas  desse  próprio sujeito,  Foucault  sugere  que  todo  o  saber  é  poder  e  vice-versa.   Ou  seja,   toda   relação   de   poder   que   é   exercida imediatamente   produz   um  saber,  que,   por   sua   vez,   é responsável   pela construção   e   pelo   exercício   de  novas relações de poder (FOUCAULT, 1987, p. 27).

As ciências humanas, como a pedagogia, a história, a psicologia  e  a  geografia,  na  perspectiva  genealógica,  são indiscerníveis da ideologia:

"O objetivo da genealogia foi neutralizar a ideia que faz  da  ciência  um  conhecimento  em  que  o  sujeito  vence  as limitações  de   suas  condições  particulares  de   existência, instalando-se  na  neutralidade  objetiva  do  universal  e  da ideologia  de  um  conhecimento  em  que  o  sujeito  tem  sua relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existência." (MACHADO, 2007, p. 176-177)

No  primeiro  volume  de História  da  Sexualidade:  a vontade  de  saber,  essa  relação  se  torna  mais  nítida  e  clara, quando Foucault sugere que existe uma explosão discursiva sobre  o  sexo  nos  últimos  três  séculos,  ou  seja,  há  uma incitação  institucional  a  se  falar  sobre  o  sexo,  em  suas articulações mais visíveis, e em seus mínimos detalhes; isso para  que  houvesse  “efeitos  múltiplos  de  deslocamento,  de intensificação,   de  reorientação,   de   modificação   sobre   o próprio desejo” (FOUCAULT, 1988, p. 26). Quanto mais se soubesse sobre o sexo, mais informações existiriam para que a  linha  entre  o  lícito  e  o  ilícito  fosse  demarcada  no  interior mais  íntimo  das  famílias  e  das  relações  conjugais.  E  é  uma demarcação  que,  como  técnica  de  poder,  se  exerce  muito mais como discursos públicos do que é ou não útil ou bom, do que uma legislação regulatória e proibitória.

Mas  o  século  XIX,  de  acordo  com  Foucault,  serviu para   que   houvesse  uma implantação   das   perversões, determinadas e reguladas por lei: desde as “recomendações” para  as  vidas  e  relações  conjugais  (FOUCAULT,  1988,  p. 38),  passando  pela  homossexualidade,  infidelidade  e  até  a bestialidade;   tudo   estava  passível   de  condenação   e/ou recuperação.  Quanto  mais  se  caçavam  as  “sexualidades periféricas” – descrevendo-as  e  especificando-as – mais  se definiam  os  indivíduos,  e  mais  as  esferas  institucionais poderiam agir, fazendo com que esses indivíduos entrassem no   eixo  desejado.   Quanto   mais intensos   eram   esses exercícios  de   uniformização,   a   partir  da   captação   da multiplicidade  dos  discursos,  mais  era  conhecido  e  mais  os saberes eram acumulados.

É a submissão dos corpos, e sua construção como um aparato  político  e  econômico  que,  de  acordo  com a  análise feita  pela  genealogia  do  poder,  é  onde  está  a  construção  do saber. Portanto, é necessário estudar o exercício do poder, as relações  de  força,  para  ser  possível  entender  o  surgimento dos  saberes.  O  que  a  genealogia  busca  é  justamente  o  que Foucault, no curso no Collège de France de 1976 acaba por chamar de “saberes sujeitados” (FOUCAULT, 1999, p. 13), ou   seja,   os   processos   que   fizeram   com   que  o  próprio conhecimento – e  aí  também  a  ciência – fosse  filtrado, hierarquizado, desqualificado e deslegitimado. 

A  genealogia  só  se  torna  possível,  portanto,  a  partir daquilo  que  Foucault  intitula  como  “a  insurreição  dos saberes  sujeitados”,  em  uma  ação  em  que  os  saberes  não científicos,  de  senso  comum,  viessem  à  tona  para  que  a análise  do  poder  pudesse  ser  realizada.  É  a  fala  do  médico ou do doente que se posiciona contra o saber da medicina; o discurso   do   policial    ou   do   preso   contra   o   sistema penitenciário;    do    professor    e    do    aluno    contra,    ou marginalmente, ao sistema escolar. 

Foucault,    portanto,    sugere    a    genealogia    e    a insurreição  dos  saberes  por  acreditar  que  as  grandes  teorias metanarrativas  e  totalitárias  (FOUCAULT,  1999,  p.  10), “envolventes  e  globais”,  não  são  capazes  de  dar instrumentos que possam ser utilizados localmente, a não ser que    se    transformem    esses    saberes    locais    em    uma representação ou teatralização, passíveis de ser completamente  explicadas  pela  grande  teoria.  Além  disso, Foucault  não  quer  analisar  a  política  e  o  poder  a  partir  das formas regulamentadas e legítimas que analisam o poder em seus efeitos  de  conjunto,  ou  seja,  se  estudar  somente  as consequências ou os efeitos de um poder central regulatório, uma  hora  ou  outra  o  pesquisador  irá  se  deparar  com  a pergunta “de que é o poder”. 

Mas,  se  a  genealogia  parte  da  perspectiva  na  qual  o poder não é uma apropriação, e sim um exercício, é preciso estudá-lo  a  partir  do  fora,  e  como  ele  se  exerce  em  suas trocas.   É   nessa   força,   que   vem   de   fora,   que   se   dá   a construção  de  um  saber.  Como  diria  Deleuze  (2006,  p.  78-79), é o afeto criando pensamento. 

Nesse  sentido,  é  possível  e  necessário  buscar  outros espaços  de  produção  de  saber  e  conhecimentos,  nos  quais outras potenciais relações entre outras ecologias e educações estão  sendo  traçadas,  integradas,  conectadas  e  entrelaçadas. Quais  são  as  outras  possíveis  educações  ambientais  que estão    sendo    construídas    em    espaços    que    não    são hegemonicamente    reconhecidos    como    produtores    de educação    ambiental,    além    das    esferas    acadêmicas, burocrático-estatais,  e  mesmo  nos  movimentos  políticos  e sociais que se intitulam como ecologistas e educacionais? 

No entanto, quando esse texto se propõe a tentar fluir diálogos  entre  a  educação,  a  ecologia  e  a  musicalidade extrema  e  as  perspectivas  anarquistas  do grindcore,  não  é para  averiguar  se  realmente  existem  educações  ambientais em   suas   imagens,  discursos,   (anti) musicalidade   e  ações políticas.  A  intenção  aqui  é  entender  o grindcore como elaborador de ecologias e processos formativos das pessoas, sendo  assim  um  agente  também  histórico,  a  partir  de  sua postura  dissidente,  resistente e  rebelde,  perante  a  cada  vez meia   intensa   esquizofrenia   produzida   pelo  Capitalismo Mundial Integrado.


Grindcore: ruído e anarquia

O grindcore surge  nos  anos  1980,  considerado,  ao mesmo  tempo,  legado  do punk e hardcore,  assim  como  do thrash e do death metal. Apresentado como uma dissidência do punk – assim como o thrash e o death eram dissidências do metal clássico – tem em suas composições os três acordes do  baixo  e  da  guitarra,  e  a  bateria  em  uma  velocidade intensa,  muitas  vezes  com  o  ritmo  de  uma  britadeira.  Por sua  vez, o ritmo  criado  pelo grindcore acabou  se  tornando referência para as bandas death e black metal dos anos 90.

Os  primeiros  indícios  de  conjuntos  que  podem  ser considerados   como   pioneiros  do grindcore surgiram   de diversos  países,  como  o  Siege  (EUA),  Lärm  (Holanda), Asocial (Suécia) e o Brigada do Ódio (Brasil). Eram bandas que   se   constituíam   como hardcore,  mas   aceleravam   a velocidade   e   criavam   uma   sonoridade   completamente distinta, já que incluíam o que no Brasil chamávamos sucos, ou em outra terminologia, os blast beats, ou seja, o que fosse mais próximo da completa cacofonia.

Mas, o surgimento desses conjuntos se encontrava no contexto  do  movimento  punk  dos  anos  80,  cuja  perspectiva libertária anti-Estado, anti-capital, anti-racista, ambientalista e  feminista  de  suas  temáticas  estão  presentes  de  maneira ativa e intensa. De acordo com O’hara (2005, p. 17), essa perspectiva  não  pode  ser  datada  no  surgimento  dos  Sex Pistols,  e  ter  reaparecido  com  o  grunge  de  Seattle.  Após  o fim  dos  Sex  Pistols, a  condição  libertária  dos  conjuntos  e dos indivíduos do punk e do hardcore do fim dos anos 70 e começo   dos   anos   80,   se   manteve   ativa   e   crescente, circulando  em  redes  internacionais  e  regionais  de  contatos, como  acontecia  entre  as  bandas  de thrash e death metal.  E bandas  brotavam  de  todos  os  lados.  O  relato  de  O’hara  é pontual nesse sentido:

"A  cena  europeia  apresenta  um  número  maior  de fanzines e  bandas  anarquistas,  fazendo dos punks europeus, historicamente, mais ativos em termos políticos que os norte-americanos.  Os  criadores  e  editores  desses  fanzines foram influenciados pela segunda corrente do punk europeu (1980-1984),  que  era  visivelmente  politizada.  Bandas  como Crass, Conflict, Discharge, no Reino Unido, The Ex e BGK, na    Holanda,    MDC    e    Dead  Kennedys,    nos    EUA, transformaram  muitos  punks  em  pensadores  rebeldes,  em vez  de  simples  roqueiros.  As  ideologias  dessas  bandas  se estendem   até  hoje  por  grupos  que  tocam  em  todos  os diferentes  pontos  do  espectro  musical  punk."  (O’HARA, 2005, p. 74)

O  conjunto  grindcore  há  mais  tempo  na  ativa  é  o Napalm  Death. E,  apesar  de  ter  mudado  todos  os  membros da   formação   original,   as   perspectivas   em   relação   à sociedade,   meio   ambiente,   política,   religião   e   violência mantêm  o  mesmo  radicalismo  e  contestação  de  quando  a banda lançou seu primeiro álbum, intitulado Scum, o qual é aberto com uma lenta introdução, que repete constantemente Multinational Corporations, genocide of the staving nations (NAPALM DEATH, 1987).

Banda formada em Birmingham em meados dos anos 80,   composta   na   maior   parte  por  filhos   de   operários, mostrou-se  original  devido  ao  extremo  barulho  de  suas composições, ao teor ácido de suas letras, e pela brutalidade visual de sua capa.

Uma    grande    caveira,    com    uma    longa    peruca despenteada,  e  com  asas  de  morcego  que  se  destacam  na capa.   Na   sua   frente,   cinco   homens,   com   os   rostos deformados, vestidos de terno, com sorrisos sarcásticos e, na frente deles, uma mulher negra, esfarrapada, cercada de três crianças magras também farroupilhas, em pé sobre o letreiro  que traz  o  nome  do  disco,  Scum.  Por  sua  vez,  o letreiro está rodeado de um mar de crânios, entre os quais se encontram    as    logomarcas    de    uma    série    de    grandes corporações internacionais, como IBM, McDonald’s, Nestlé, Coca-Cola,  GM,  Union  Carbide,  Kraft,  ICI,  Exxon,  Roche, Ford, Phillips, entre outras. Nos cantos da capa, uma série de estruturas  industriais,  fortalecendo  o  discurso  anti-industrial da  perspectiva punk  que  permeia  o  universo  das  bandas  de grindcore.

Ecologias noise

O atual vocalista da banda, Marc “Barney” Greenway – ex-vocalista da banda death metal britânica Benediction, e está  no  Napalm  Death  desde  1990 – é  um  ativo  militante ecologista  e  vegetariano;  em  diversos  shows,  veste  uma camiseta   do   grupo   Sea  Shepherd,   organizado   por   Paul Watson.  Aliás,  no  vídeo On  the  Brink  to  Extinction,  de 2009, as imagens de caçadores de focas e baleias permeiam todo   o   videoclipe,   e   na  composição,   podemos   notar   a constante  associação  entre  a  extinção  da  vida  no  planeta como a extinção da raça humana;

"Can we avoid a natural selection?
do have the right to survive the failures 
nature, its force the scales unbalanced
what’s the next step? What can we resolve?"
(NAPALM DEATH, 2009)

Mais  do  que  uma  simples  indignação  em  relação  à caça,  a  matança,  ou  a  própria  extinção  de  determinadas espécies, a banda se pergunta sobre o direito à sobrevivência humana  após  o  desequilíbrio  causado  e  promovido  pela humanidade.  Além  disso, é  evocada  a  noção  do  tempo, tempo  limitado,  em  relação  ao  qual  nós,  humanos,  estamos fadados a ficar sobre o planeta. A pergunta que se desvela é se    estamos    preparados,    ou    se    poderemos    resolver (solucionar)  essa  condição,  fluída  e  temporária  dos  seres humanos   sobre   o   planeta.   Sugere-nos   pensar   a   questão debatida por Castoriadis (2006), sobre a condição à margem do  precipício  que  nós  seres  humanos  nos  encontramos,  no que  diz  respeito  não  somente  às  perspectivas  futuras  e  à ecologia, mas à própria produção de significados e sentidos de mundo sobre as quais constantemente as relações entre a educação e a ecologia propõem a pensar.

Nesse  sentido,  a  banda  acompanha  a  tendência  das bandas  de thrash metal,  ao  abordar  o  apocalipse  atômico, cujo  discurso  ora  é  mais  metafórico  e  implícito,  ora  a abordagem é direta, e está  presente tanto nos  primórdios da banda, nos anos 80, quanto nas composições mais recentes: 

"The ascencion of human intelligence
To atomic genocide
Homo sapiens = the disease the cause the pollution
Erase the ages of evolutions"
(NAPALM DEATH, 1987)

"Eco-shock – fills our seas
Eco-shock – bone disease
Eco-shock – filling or skies
Eco-shock – followed with lies
Singular cancers – Absolute disasters
Ironic   tragedy – Dark   aspects   of   chemistry"
(NAPALM DEATH, 2012)

Principalmente     na     composição     de     2012,     as perspectivas sobre o mundo são sombrias e apocalípticas, no que  tange  à  questão  nuclear.  Aparecem  a  energia  e  as bombas  atômicas,  a  guerra  como  causa  do  armagedon  e  da destruição em larga escala, impedindo a manutenção da vida no  planeta.  O  diabo,  é  o  educador  ecologista  menor,  que aparece vociferando de modo incompreensível, como o anjo da   morte   que  anuncia   o   inferno   fervente   e   radioativo, presente  desde  os  mares  e  o  ar  contaminados,  que  invade  o corpo  até chegar  os  ossos,  sob  o  aspecto  da  energia  sem controle,  como  a  banda thrash Nuclear  Assault  já  havia anunciado, também nos anos 80 (BARCHI, 2016).

Mais  do  que  fatalismo,  há  um  combate,  um  anúncio de resistência, que nega e recusa a imposição de uma forma de    energia,   as   justificativas    da    guerra    e    a    própria legitimidade  de  um  regime  de  governamentalidade  policial. E  não  é  só  a  letra  que  diz  não,  é  a  própria  sonoridade  das composições   que   não   se   permitem   enquadrar   em  um contexto  de  aceitação  do  discurso,  para torná-lo  mais  um entre    vários    aceitos,    mas    impotentes    em    sua    força contestatória;     legitimados,     mas     ao     mesmo    tempo banalizados por sua circulação    midiática;    e    comercializáveis,    matando    sua independência e seu espírito Do It Yourself.

Ao    manter,    por    tanto    tempo,    uma    sonoridade “inaudível”, o grindcore levou ao extremo a impossibilidade de   sua   aceitação   pela   indústria   musical – apesar   das tentativas de algumas gravadoras e de certa popularidade de algumas  bandas,  como  o  próprio  Napalm  Death.  Isso  fez  com  que  a  assimilação,  o  apagamento  e  o  impedimento  de sua  sobrevivência – tanto  sonora  quanto  discursiva – se tornassem  tarefas  árduas  e  quase  impossíveis  para  agentes policialescos   tanto   da   música  quanto   de   outras   esferas políticas e sociais. 

Ecologias e educações “Gore”: Vegetarianismo, especismo, vivissecção

O grindcore, em sua herança punk libertária, absorve e dissemina as mais diversas preocupações entre os próprios punks, como entre outras esferas da música extrema, como o próprio thrash,  o death e  até  o black metal.  Uma  das  mais caras é a questão dos direitos dos animais, o vegetarianismo, o veganismo e  o  que é chamado de especismo. O uso dos animais  em  laboratório  é  uma  constante  do  discurso  das bandas grindcore, como o próprio Napalm Death:

"Inject me/ With your pudrid diseases
Stretch my senses
Beyond the peak of insanity"
(NAPALM DEATH, 1988)

Aqui, nada é capaz de justificar a dor, o sofrimento e o  abuso  contra  coelhos,  macacos,  ratos,  gatos  e  cães  em laboratório.  O  anarquismo,  como  igualdade  de  condições  e direitos,  estende  a  liberdade  e  a  garantia  de  qualidade  de vida a todos os seres que são considerados como sencientes, ou   seja,   conscientes   de   sua   própria   dor.   Aliás,   essa preocupação  com  os  animais  foi  levada  ao  extremo  com  a banda Carcass. 

Contemporânea e compatriota do Napalm Death, que contava,    inclusive,    com    um    ex-guitarrista    da    banda grindcore em sua formação, promoveria um encontro entre o death metal e o grindcore, criando um estilo mestiço que passaria a se chamar splatter. Sua sonoridade oscilava entre o grind e o death, e as suas temáticas eram “Gore”, ou seja, uma    constante    fala    sobre    enfermidades,    cadáveres, deterioração   do   corpo   humano   e  escoriações   extremas, expondo   a   nua   e   crua   verdade   sobre   os   processos   de deterioração humana.

O    nome    dos    dois    primeiros discos, Reek    of Putrefaction e Symphony  of  Sickness,  e  as  próprias  capas – completamente  preenchidas  de  fotos  de  doenças  expostas, cadáveres,  pedaços  e  restos  de  corpos – possibilita  uma compreensão  das  letras  que  estavam  sendo  regurgitadas, vociferadas, vomitadas   e   berradas   pelo   Carcass. Por exemplo: 

"Inhaling the dark smells
As you gorge out the dripping innards with glee
Succumbling to a translucidid state
As you sniff the aroma of necropsy
Bacterial decomposition
The aroma of larval infestation
Comsumin, ripening slime
As  the  cadaver  is  slowly  wasting"
(CARCASS, 1989)

Apesar  de  muitas  bandas  de death  metal usarem  a temática  do  horror  gore,  da  morte  e  das  mutilações  como forma de criar impacto, divertir-se com um humor negro, ou simplesmente   conseguir   sucesso   com   um   público   que buscava cada vez mais essa temática entre os anos 80 e 90, o Carcass, com esse discurso promotor de repugnância e asco, afirmou   uma   brutal   militância   pró-vegetarianismo,   pró-animais:

"Para  Carcass,  esse  ângulo  era  el  vegetarianismo. Aunque  sus  implicaciones  eram  que  la  carne  animal  y humana    eran    una    y    la    misma    era    constantemente representadas  em  lo  sangriento  de  la  portada  de  su  álbum, Steer y Walker eran devotos vegetarianos, mientras Owen sin  ser  tan  estricto,  también  era  vegetariano."  (MUDRIAN, 2009, p. 132)

Um  verdadeiro  açougue,  um  matadouro.  Era  dessa forma que o Carcass expunha a recusa ao consumo de carne e  invertia  ao  extremo  a ecologia  do  vegetarianismo.  Assim como a própria educação, já que ao referir-se a uma carne, de forma indistinta, se era animal ou humana, sugeria pensar a legitimidade do exercício de poder humano sobre as outras espécies  animais.  A  partir  de  uma  avalanche  sonora  de distorções, blast beats e vocais guturais vomitados, berrando incompreensivelmente     sobre     necrotérios,     cirurgias     e doenças,  o Carcass  levava  a  ecologia  a  outro  patamar  do inferno: o do corte, da escoriação, da exposição na superfície da carne.


Anos  mais  tarde,  no  disco  de  retorno  (a  banda  ficou inativa  por  18  anos),  o  Carcass,  traria  a  questão  ecológica novamente  à  tona,  buscando  no  escritor  britânico  William Blake  o  conceito  de  “satânicos  moinhos  negros”  (Dark Satanic Mills), do poema Jerusalém, para tratar da questão da  industrialização europeia, e o processo de “moagem” de carne humana promovido pelas fábricas recém-instaladas em território britânico, especialmente em Albion, cidade amada de Blake.

"Six, zero, two, six, nine, six, one
Torn apart in the soul destroying...
Six, zero, two, six, nine, six, one
Sweat & no redemption in the dark satanic mills

An existence, subservient, blinded you'll see
"A working class hero is something to be"
An existence, subservient, blinded you'll seed
A   working   class   hero   is   something   to   bleed"
(CARCASS, 2013)

A  associação  entre  os  trabalhadores  operários  e  os animais,  sugerida  na  temática splatter do  Carcass  também aparece no último álbum do Napalm Death, intitulado “Apex Predator – Easy Meat”  (Superpredador – Carne  Fácil), em  que  o  discurso  vegetariano  se  aproxima  do  discurso  de defesa do próprio trabalhador.  Tão presa quanto são os bois, vacas,    porcos,    frangos,    entre    outros    bichos,    são    os trabalhadores das classes menos abastadas transformadas em combustível  para  a  manutenção  da  produção,  não  só  do trabalho fabril, mas de todas as esferas laborais.

A    capa,    diferente    dos    álbuns    anteriores,    que geralmente  mostravam  mosaicos  de  imagens  ligadas  aos mais   distintos   aspectos   das   questões   políticas, sociais, ambientais  e  econômicas,  é  simplesmente  uma  bandeja  de supermercado,  embalada  em  plástico  PVC,  que  de  longe parece   um   pacote   comum   de   carne   resfriada,  mas  que olhando  mais  de  perto,  mostra  diversos  pedaços  de  corpo humano, cortados e  misturados. Esse  é um discurso comum entre  militantes  vegetarianos,  como  por  exemplo,  nas  ações do  grupo  PETA,  em  cujas  ações  públicas  embalam  pessoas sob tinta vermelha, e as “empacotam” como se fossem carne para   vender,   mas   que   também  pode   ser   associado   à exploração contemporânea  da  carne  da  multidão,  a  qual, para  o  filósofo  italiano  Antonio  Negri  (2009),  é  ao  mesmo tempo    passível    de    ser    explorada    e    moída,    como potencializadora  de  devires  revolucionários  constituintes  de novas  composições  sociais,  políticas  e  econômicas.  Que posso também incluir como ecológicas.

No  sentido  tanto  de  defesa  dos  animais,  como  da refutação  à  energia  atômica,  quanto  a  outras  esferas  da crítica  à  destruição  da  vida,  vale  fazer  referência  a  uma banda  belga,  chamada  Agathocles.  É  uma  das  bandas  mais ativas nos mais diversos sentidos da militância no grindcore libertário, seja no sentido de produzir composições e álbuns, seja  no  sentido  de  apoiar  outras  bandas,  seja  na  ação  direta pelos   direitos  dos   animais,   pelo   vegetarianismo,   pela denúncia das práticas predatórias.

Entre LP’S, EP’S, CD’S, coletâneas, fitas, seja solo, ou   em   parcerias   com   outras  bandas,   são   mais   de   250 trabalhos  lançados  pelo  Agathocles.  Desde  1987,  muitas  de suas  capas  fazem  referências  diretas  ao  uso  de  animais  em laboratório, fazendas, fábricas de roupas, além da exposição de  outros  discursos  militantes  libertários,  como  a  crítica  à ação policial, à disseminação da fome no mundo, ao racismo e à pastoralização religiosa.

Quero  destacar  três  capas.  A  primeira  é  de  um  EP chamado If  this  is cruel, what’s  vivisection  then?, o  qual mostra  uma  pessoa  deitada,  amarrada  com  correntes,  com tubos entrando pela boca, pelo nariz, ouvidos, com os olhos tapados com uma espécie de óculos especiais, e uma série de outros  tubos  entrando  pela  pele  e  pelo  pescoço.  O  nome  do EP  não  é  referente  a  nenhuma  música,  mas  é  referente  à capa e a mensagem em si. A alusão à crueldade presente aos testes  em  animais,  que  permeia  grande  parte  das  temáticas das  bandas  libertárias,  é  também  uma  militância  ativa do vocalista  Jan  Fredrickx,  último  remanescente  da  formação original,  e  também  um  militante  vegetariano,  libertário  e anti-vivisseccionista,  como  Barney  Greenway,  do  Napalm Death.

Outra  capa  é  do  EP split (em  conjunto)  com  a  mais conhecida   banda grindcore brasileira   chamada   Rot,   de Osasco,   que   mostra   a   imagem   de   uma  bomba   sendo detonada  (aparentemente  um  teste  em  área  oceânica)  e  que se intitula Wiped from the surface, que é também a primeira música do EP:

"Nuclear intoxication \ Areas where all life has gone
Exposed  to  radiation\ Research  the  effects  of  the bomb
Militarism fucks up things \ Only tryng a war to win
Reducing  humans  to  a  thing \ Thrown  like  garbage in the bin
Addicted to power \ Addicted to greed 
Another mutant bow \ From the capitalism breed
Research  for  what  purpose \ To  blast  all  life-forms from the surface
Does  science  know  its  limits? \ Will  the  threshold ever be reached?"
(AGATHOCLES, 1994) 

Da  mesma  forma  em  que  o  Napalm  Death  recusa, refuta e contesta a energia nuclear, o discurso do Agathocles questiona os propósitos e os limites da ciência. Uma ciência militarista, de Estado, que é financiada e legitimada como a forma racional de desenvolvimento da humanidade, que não pode  ser  contestada,  a  não  ser  por  práticas  inseridas  no  seu paradigma, então, em vigência. 

Ao   negar   a   ciência   nuclear,   devido   aos   seus propósitos   militares   e   estatais,   aos  seus   paradigmas   e consequentemente seus métodos, o grindcore anti nuclear do Napalm  Death  e  do  Agathocles,  assim  como  o  discurso antivivisseccionista  e  anti-especista  do  Carcass – e  de  uma grande  quantidade  de  outras  bandas grindcore e splatter – solicitam  a  exigência  e  a  existência  de  outras  ciências. Ciências que, ao refutarem o Método em prol dos métodos, e o fim  da  exclusividade  do  Estado/Capital  na  produção  de ciência,  estão  se  aliando  principalmente  à  reivindicação  de Feyerabend  pela  multiplicação  dos  métodos,  e  evocando Foucault,  ao  se  estabelecerem,  por  intermédio  da  (anti) música como promotoras da “insurreição dos saberes”. 

O grindcore, o thrash metal, o splatter, o death metal ou  o metal clássico,  ao  se  colocarem  ao  lado  dos  discursos dos  vencidos – os  indígenas,  os  afetados  pela  radiação,  os animais – e   recusarem   a   ciência   de   Estado,   maior,   se propõem como   máquinas  de  guerras   nômades,   ciências menores, saberes insurrectos, pois já não concordam com as formas  e  afirmativas  das  ciências  instituídas  e  maiores.  Ao se postarem como tal, se aliam às perspectivas que não mais se  colocam  como  alinhadas  aos  rebanhos  normatizados  e policialmente  governamentalizados,  no  que  diz  respeito  à reprodução dos saberes maiores. 

Os gritos, urros e vociferações contra a infinidade dos horizontes  científicos  e  suas  catastróficas  consequências, sugerem a abertura do debate sobre as reais necessidades dos coletivos    sociais    humanos,    e    de    quais    saberes    e conhecimentos   atendem  a   essas   reivindicações,   ou   se somente  atendem  aquilo  que  o  mercado  precisa  para  sua ampliação,  e  a  respectiva  segurança  que  os  Estados  irão promover para que isso se mantenha expansível. 

A   terceira   capa   é   do   disco   de   1997,   chamado Humarrogance.  Diferente  da  maioria  das  capas  das  bandas grindcore,  e  de  suas  próprias  capas  anteriores,  não  há  uma foto,  ou  um  mosaico  de  imagens  que  represente  ou  os membros   da   banda,  ou   alguma   mensagem   ou   discurso panfletária  direta,  mas  uma  gravura  que  não  permite  uma digestão rápida e instantânea da imagem. 

Há  quatro  pessoas,  cujas  feições  impedem  a  sua identificação  de  gênero.  Estão  postadas  à  esquerda da  capa, em frente a uma grande mesa coberta por um lençol branco. Sentadas em pares, o rosto destas pessoas parecem fundir-se, dando  a  impressão  de  quatro  rostos  misturados  em  dois, disformes,  indefinidos  e  inexpressivos,  com  exceção  do terceiro rosto da esquerda para a direita.

Os  dois  primeiros  estão  reproduzidos  na  frente  dos dois  outros,  em  uma  pequena  escultura  postada  sobre  a mesa.   As   mãos   dos   dois   primeiros   rostos – brancas, praticamente  tumulares,  parecendo  frias  e  sem  vida,  estão segurando  um  pequeno  relógio  de  areia  e uma  borboleta amarela,  a  qual  parece  estar  sendo  o  motivo  de  conversa entre essas duas pessoas.

Sobre  a  mesa  ainda  há  uma  mão - que  parece  de manequim,  pois  o  pulso  está  diretamente  sobre  a  mesa – segurando  um  ovo,  e  também  um   pequeno  busto,  cuja aparência é  semelhante  a  das  pessoas  sentadas  ao  redor dessa  mesa.  Ainda  na  parte  de  cima  da  capa,  é  perceptível somente a borda de outra mesa, e as pernas desnudas de uma de  outra  pessoa,  em  pé.  Ao  me  debruçar  sobre  a  música título,  que  abre  o  álbum,  a  capa  começa a  tomar  algum sentido.  O  termo  “Humarrogância”  dá  voz  à  crítica ecológica  e  anárquica  do  Agathocles,  quando  aparece  a contestação  ao  sentimento  de  superioridade  que  os  seres humanos   parecem   ter   em   relação   à  seres   considerados menores e inferiores.

"Yet another song / About our human race
Creating  a  planet  of  sadness  / The  products,  these are we
Yet another warning / For the human family
Hummarogance  is  taking  over  / Stabbing  earth  to bleed
Exploit and pollute, / Destruction, rape of woods
These   are   just   a   few   actions   /  Of   intelligent humanhood,
Just think, yes do think / Of what we are heading to
And act, yes react / For the sake of mother earth" 
(AGATHOCLES, 1998)

Em 1998, quando esse álbum  foi  lançado, a banda já tinha  quase  15  anos  de  estrada,  e  reclamava,  na  canção título,  o  cansaço  de  repetir  constantemente  quase  que  as mesmas coisas sobre a raça humana, sobre a família, sobre a moral, sobre os costumes, e sobre o suicídio coletivo que se aproximava  devido  à  manutenção  dessa  situação,  já  que  é justamente essa perspectiva de superioridade em relação aos outros  seres,  e  a  constante  e  ilimitada  expansão  da  ciência que  poderiam  provocar  os  danos  catastróficos  à  vida  no planeta.

As potencialidades educativas das ecologias ruidosas do grindcore

É  necessário  destacar  e  evidenciar  a  presença  das perspectivas   educativas   e  ecológicas   no   universo   da sonoridade    extrema    do grindcore.    Não    o    processo regulatório científico, normativo, pastoral, governamentalizado   e   policialesco   criado   pelo  universo escolar institucional, que insiste em criar modelos de ensino aprendizado,    com    currículos    e    práticas    estabelecidas verticalmente aos envolvidos nos cotidianos escolares.

O  termo old school,  ou new school para  bandas  que mudaram  a  sonoridade  e  as  perspectivas  mais  antigas,  se refere  não  somente  a  um  determinado  ou  vários  estilos  de (anti)  música,  ou  música  extrema,  nascidas  no  meio  de culturas  “eXtremas”  (CANNEVACCI,  2002)  insubmissas, contraculturais  e  inconsequentes.  Ou  ainda,  não  se  refere somente  a  uma  fase,  novas  tendências  musicais  e  estéticas exóticas,  típicas  das  juventudes  descontentes  da  virada  do século. 

Quando  se  fala  em old school,  se  fala  no  fato  de jovens     entusiastas,     mas    rebeldes,     contestadores     e iconoclastas,   que   por   meio   de   uma   proposta   ruidosa  e inconformada, criaram outras perspectivas de ação política e ecológica,  através  do grindcore,  entre  outras  sonoridades extremas surgidas a partir dos anos 80. 

Os logos das bandas, as capas de LP, EP’s, CD’s, os desenhos  das  camisas,  a  sonoridade,  os  aspectos  políticos, sociais,     culturais     e,     principalmente     ecológicos    das composições,  possuem  basicamente  os  mesmos  elementos desde  os anos  80,  mostrando  que  verdadeiras  escolas  do pensamento, não institucionalizadas, foram sendo construídas.

Não   são   as   escolas   físicas,   alicerçadas   e   fixas, sedentárias,   com   professores  devidamente   formados   em instituições  regulamentadas  e  autorizadas,  cujos  currículos, definidos  de  antemão,  impõem  saberes,  histórias  e  ciências devidamente   autorizadas  pelos   órgãos   constituídos.   E, principalmente,  pelas  quais  todos  necessariamente  precisam que passar só pelo fato de ter nascido, independente daquela escola atender aos afetos, aos desejos, aos interesses.

Essa old  school extrema,  antimusical,  contracultural, ruidosa,  menor  e  inversa,  apesar  de  seus  conhecimentos  e métodos próprios de produção de subjetividades e formação de    determinados    aspectos    dos    indivíduos,    não    está preocupada  com  conceitos  ou  imposições  de  uma  noção  de cidadania  dos  direitos  e  deveres  que  impõe  ao  indivíduo  a incontestável  inclusão  na  sociedade  contemporânea.    Ou com a formação das pessoas para o mercado de trabalho, por intermédio   de   uma série   de   imposições  de   condutas   e normatividades,  associadas  a  uma  lógica  competitiva,  no qual  uma  ecologia  dos  bons  comportamentos  precisa  ser inserida.

Compreender a sonoridade quase sempre intransponível,   assumir   a   aparência   mórbida  e híbrida, compartilhar a atitude de recusa e de combate, dar-se a fuga de  uma  unívoca  noção  do  coletivo,  e  inserir-se  em  grupos que  possibilitam  outras  formas  de  ser,  de  se relacionar  e de existir, perpassam pela necessidade de haver um processo de aprendizado que permita como saber-ser esse outro.

Um  aprendizado  que  é  atravessado  por  constantes criações de amizades, estabelecidas em conversas de bar, de shows, trocas de fitas, LP’s, CD’s, VHS’s, DVD’s, revistas, fanzines,  contatos.  Mais  do  que  um  processo  unicamente comunicativo  e/ou  comunicacional,  há  um  intenso  processo educativo formativo a partir do interesse e o entusiasmo em saber e se aprofundar mais nesse universo. Saber mais sobre as  bandas,  saber  sobre  mais  bandas,  ter  mais  contatos, participar de mais shows, ouvir e agitar com mais discos. 

Se for possível chamar essas iniciativas,  movimentos e  dinâmicas  de  contraculturais,  é  porque  um  movimento  de recusa à imposição das lógicas hegemônicas se faz presente. Assim  como  as  perspectivas  dos  movimentos  de  1968  são amplamente  tratadas  como  contraculturais,  as  sonoridades grindcore ampliaram  essa  possibilidade,  pelo  fato  de  não somente uma contestação sobre os poderes institucionalizados  ser  realizada,  mas  todo  um  contexto  de produção  de  subjetividades  alternativas  e  resistentes  terem se  espalhado,   rizomaticamente,   ao   redor   do   globo   nos últimos 30 anos.

Mais  do  que  contar  a  história  dos  vencidos,  ou  da plebe,    ou    dos    trabalhadores    pobres    constantemente embrutecidos   e   explorados   pelo   capital,   buscar   outras construções   de   sentidos   de   ecologia   e   educação   em movimentos    de    musicalidade    extrema    e    perspectiva anarquista – como o grindcore – é compreender a produção de sentido em outras esferas cotidianas, nas quais educações ambientais  outras  também  são  realizadas.  Senão  do  modo sugerido/imposto  pelas  políticas  públicas,  mas  de  modo muito  singular  e  adequado  às  perspectivas  de  mundo  dos indivíduos e coletivos envolvidos.

Essas  histórias  outras  de  construção  de  saberes  e sentidos  nas  relações  que  envolvem  a  educação  e  o  meio ambiente, não são somente excluídas  por não se adequarem aos  padrões  e  normas  impostas  pelas  políticas  públicas  ou pelo    interesse  da    educação    para    a    sustentabilidade desenvolvidas  pelo  ecocapitalismo.  São  histórias  que,  em sua  militância  e  sua  condição  rebelde,  não  fazem  questão nenhuma  de  se  adequarem  à  meta-história  imposta  àqueles que não participaram dos primeiros momentos da construção de   uma   determinada   educação   ambiental,   que   podemos chamar  de  maior,  a  qual  não  deixa  de  ser  importante  no processo  de  construção  de  sociedades não  predatórias,  mais justas e igualitárias. Mas que não pode ser mais considerada como  a  única,  a  mais  pertinente,  mais  sóbria  e  dialógica, pois,  quanto  mais  ela  se  considera como  tal,  mais  frágil  é  a possibilidade   de   sua   existência  transformativa,   por   seu apego à verdade, ao poder e à cristalização de seus ideais.




Publicado originalmente aqui.